Um filme para encarar medos e fantasmas

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Cinema. 'Veneno Cura' estreia-se amanhã

Raquel Freire fez um filme sobre o amor entre "sobreviventes"

Há uma cena em Veneno Cura em que uma mulher está a matar galinhas com uma faca. Degoladas, as galinhas jazem no chão mas uma delas, já sem cabeça, continua em corrida de um lado para o outro. É impossível ficar insensível. A realizadora Raquel Freire vê nesta cena uma metáfora do filme inteiro. "Como aquela galinha, nós somos sobreviventes, sem cabeça, a sangrar por todo o lado, mas continuamos a correr e a aproximarmo-

-nos uns dos outros e a querermos amor."

Veneno Cura, a segunda longa- metragem da realizadora de Rasganço (2001), é, nas palavras da autora, um filme sobre sobreviventes - pessoas que chegaram à idade adulta, já tiveram os seus sonhos e perceberam que não vão conseguir concretizá-los mas que, mesmo assim, "não se conformam, não desistem, continuam a tentar e a cometer muitos erros, são personagens que estão o tempo inteiro a cair ao chão, a estatelar-se ao comprido, levantam-se, recomeçam outra vez." Que, apesar de tudo, continuam a acreditar no amor.

Claro que este não é o "amor romantizado das historinhas de cordel e das telenovelas". Aqui não há príncipes encantados. Há um irmão e uma irmã apaixonados. Há uma prostituta que se apaixona pelo homem errado. Um homem que se apaixona pela prostituta errada. Uma mãe que, acidentalmente, mata a sua filha e tem que reaprender a dar-se aos outros. Um homem que está disposto a ensiná-la. "Este não é um amor cor-de-rosa dos contos de fada. É um amor vermelho escuro dos hematomas."

"As personagens são reais, são pessoas como nós", defende Raquel Freire, 35 anos. "Todos nós temos lados escondidos, secretos, que não queremos mostrar." E lá voltamos outra vez às galinhas. Toda a gente parece ficar chocada com a cena demasiado violenta mas Raquel acha que esta reacção tem a ver com a hipocrisia da nossa sociedade: "Para mim aquele é um ritual natural, a minha tia-avó matava galinhas. Todos nós comemos galinhas mas não queremos ver como morrem. O filme é sobre isto, sobre estes momentos de intimidade que nós não vemos, não queremos ver, viramos a cara. Mas temos que encarar os nossos medos e os nossos fantasmas para os ultrapassar e continuar a viver. E isso implica arriscarmos."

Raquel Freire sabe bem o que é o risco. Durante três anos o Instituto do Cinema considerou este projecto "imoral" e recusou-lhe o subsídio. Ela continuou a apresentá-lo sem mudar uma vírgula até que o júri mudasse e lhe desse, finalmente, apoio para Veneno Cura. Entretanto, tornou-se também ela uma sobrevivente - pegou numa câmara digital e fez um filme, em casa, como amigos, a que chamou A Vida Queima. Com os mesmos amigos fez o documentário Esta É a Minha Cara, sobre artistas de teatro. Os dois filmes - cinema de guerrilha, assumido - estão prontos e deverão ser vistos este ano. E tem já planos para continuar a acompanhar as personagens de Veneno Cura em mais dois filmes - assim haja apoios. "Vou continuar a filmar as coisas que me inquietam, porque se não for assim não vale a pena. Eu vivo aqui e agora e é com estas contingências que tenho de continuar."

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