Um farol a cair e "O Almoço do Trolha" quando se quer falar de austeridade

Hugo Dinis venceu a 2ª edição do Prémio de Curadoria do Atelier-Museu Júlio Pomar com uma exposição de 14 obras que falam sobre crise. Inaugura na quinta-feira e está lá o quadro neorrealista que Pomar pintou aos 21 anos
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Estranhos dias recentes de um tempo menos feliz. A exposição que o Atelier-Museu Júlio Pomar (AMJP) inaugura na quinta-feira, dia 30, às 18.00, tem um longe nome, mistura de Samuel Beckett e Vitorino Nemésio, "fazendo referência aos estranhos tempos recentes que se viveram (vivem) na sociedade portuguesa". A explicação é de Hugo Dinis, vencedor do segundo prémio de curadoria atribuído pelo museu lisboeta. Refere-se aos anos da troika, ponto de partida deste encontro de 14 obras de artistas portugueses, entre entre o anfitrião da casa, com o quadro neorrealista O Almoço do Trolha.

"Tem uma força!", dispara Hugo Dinis, junto à obra que Júlio Pomar pintou aos 21 anos e foi exposta pela primeira vez em 1946 ainda incompleta, com o artista preso pela PIDE; voltou a ser mostrado em 1950 , já finalizada, com o Menino Jesus". Foi uma referência para o curador nesta exposição. Contextualiza: "[O pintor] Era, na altura, membro do MUD, movimento associado ao PCP, muito associado ao neorrealismo", nota.

Hugo Dinis traz para a conversa um dos textos do catálogo da exposição, assinado pelo historiador José Neves. "Quem fez o almoço do trolha?" é a pergunta que lança."É uma visão não totalmente historiografada, ainda não se fez este trabalho sobre o papel da mulher neste quadro", refere o curador. O quadro de Júlio Pomar veio da Fundação Manuel de Brito, onde esteve em exposição até há pouco tempo. Foi adquirido em 2015 num leilão da Palácio Correio Velho por 350 mil euros, um valor recorde para a leiloeira.

À entrada da sala de exposições que Álvaro Siza concebeu para o Atelier-Museu Júlio Pomar, Hugo Dinis lança a questão que esteve no princípio de tudo , e a mesma que fez a si mesmo Pedro Barateiro, em 2012/2013: "Como fazer um projeto, como se adaptar e como poderia refletir a sociedade nos momentos atuais?". É disso que fala no vídeo Current Situation, outra das obras escolhidas (e, também, neste momento, na exposição Utopia/ Distopia no MAAT - Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia).

Hugo Dinis, 39 anos, licenciado em pintura, com uma pós-graduação em Estudos Curatoriais -- comissário de exposições no Espaço Novo Banco, de A Iminência da Queda na Galeria do Diário de Notícias e do projeto Antena da Fundação Serralves, trabalhou nas galerias 111 e Filomena Soares -- quis "ver como as instituições e os artistas podem reagir a estes momentos de crise". Um problema da arte que nos leva tão longe quanto a II Guerra Mundial, aponta. "Perceber como é que em tempos de guerra se pode fazer arte, se é que se pode fazer". "Não há respostas", atalha. Prefere citar Pedro Barateiro: "Não se pode ficar indiferente. Há sempre uma reação a ter".

Mau Tempo no Canal, escrito por Vitorino Nemésio em 1944, é a outra referência incontornável nesta exposição. "Passa-se no Faial, mas com vista para o Pico, no início do século [XX], na passagem da Monarquia para a República", situa o curador. "Vitorino Nemésio faz uma relação muito interessante entre o que é ser uma ilha e estar fechado sobre si próprio e quando olham para o Pico, o outro, é uma ilha igual", resume Hugo Dinis, embalado pelo som de tempestade de outro Mau Tempo no Canal, a obra de Rodrigo Oliveira, e pelo efeito de chuva do televisor. "Uma chuva que já não existe", refere.

A mais chamativa das obras em exposição é Heróis do Mar (2005), o periclitante farol de areia de sete metros de altura de João Pedro Vale, propriedade da Coleção Ellipse (ex-Banco Privado Português). Foi a "ironia" que atraiu Hugo Dinis para esta peça. "A precariedade do objeto e o estado muito frágil" (feito de ferro, esferovite e areia colada) em contraste com o discurso que se associava no Estado Novo aos Descobrimentos Portugueses e "como nos identificamos com uma situação que já não existe há 500 anos", refere o curador.

Do mesmo artista, foram selecionadas ainda Coragem Portugueses, só vos Falta ser Grandes (2010), subvertendo uma frase de Almada Negreiros, e I Can Hold It, I"m Portuguese! #2, com Nuno Alexandre Ferreira, de 2017. Apenas este trabalho e os vídeos de Pedro Barateiro e Igor Jesus, POV, são dos anos da intervenção da troika em Portugal. Os restantes são anteriores. André Romão, Carlos Bunga, João Leonardo e Joana Bastos, a única mulher nesta exposição.

Hugo Dinis acena afirmativamente com a cabeça. Sim, tinha notado na magra expressão feminina. Justifica: "Um curador tem de pensar com muitas contingências, não podia acrescentar mais uma, a das quotas". O trabalho de Joana Bastos, Próxima fonte de rendimento? (2007), é uma coleção de fotografias nas diferentes profissões que desempenhou em Londres (guia de museu, agente imobiliária, babysitter).

O projeto curatorial proposto por Hugo Dinis, para ver até 21 de maio, foi escolhido pelo júri do prémio - a diretora do AMJP, Sara Antónia Matos; o artista Vasco Araújo; e a curadora e ex-diretorado Centro de Arte Moderna, Isabel Carlos.

Com a exposição é publicado um catálogo com textos da diretora do atelier-museu, do curador, do historiador José Neves, do antropólogo Miguel Vale de Almeida, do arquiteto Tiago Castelo, do cientista Alexandre Quintanilha e da psicanalista Carmo Sousa Lima

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