Um estranho fruto
Quando a cantou pela primeira vez, numa festa privada no Harlem, ninguém disse palavra, ninguém ousou o aplauso. A plateia ouviu-a em total silêncio, e em silêncio ficou depois de a canção terminar. No mutismo dos presentes percebia-se o alcance do que haviam escutado, o quanto aquela música os perturbara, recordando-lhes um passado que teimava em não passar. No ano seguinte, início de 1939, apresentou-a no Café Society, clube progressista da baixa da cidade, poiso habitual de Charlie Chaplin, Lauren Bacall, Sarah Vaughan ou Nelson Rockefeller, um dos poucos locais nocturnos de Manhattan que não segregavam brancos e negros. Mesmo aí, tinha receio todas as vezes que entoava aquela letra, tanta era dor que ela lhe causava, tantas as lembranças que aquela canção lhe trazia do seu pai, um homem que mal conhecera, músico como ela, que morrera das sequelas da Grande Guerra, com os pulmões desfeitos pelo gás mostarda, sem que os hospitais sulistas aceitassem tratá-lo - pelo simples motivo de que era negro.
Antes dela, a música já havia sido cantada em algumas ocasiões. A mulher do autor da letra interpretava-a por vezes nos círculos esquerdistas que o casal frequentava, a cantora negra Laura Duncan cantou-a em alguns espectáculos, um dos quais no Madison Square Garden, e até um coro de 400 vozes a entoou numa récita de recolha de fundos pelos republicanos da Guerra Civil espanhola. Um dos organizadores dessa récita, Robert Gordon, que preparava o primeiro show do Café Society, aberto em Dezembro de 1938, ficou fascinado com a música, com a força das palavras, e decidiu que ela deveria fazer parte do repertório da vedeta que em breve iria mostrar no seu clube. Billie Holiday, assim se chamava a vedeta, saíra há pouco da orquestra de Artie Shaw, inconformada por a terem impedido de subir no elevador principal do hotel nova-iorquino em que se hospedava, obrigando-a a usar o monta-cargas das traseiras, pelo simples motivo de ser negra, facto tanto mais triste e irónico quanto esse hotel tinha nome histórico, Abraham Lincoln. A música, essa, chamava-se Strange Fruit, e o estranho fruto de que fala, pendente das árvores do sul da América, eram os negros linchados e enforcados em rituais de barbárie:
Southern trees bear a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swingin' in the Southern breeze
Strange fruit hangin' from the poplar trees
Pastoral scene of the gallant South
The bulgin' eyes and the twisted mouth
Scent of magnolias sweet and fresh
Then the sudden smell of burnin' flesh
Here is a fruit for the crows to pluck
For the rain to gather
For the wind to suck
For the sun to rot
For the tree to drop
Here is a strange and bitter crop
"Linchamento" ou "lei de Lynch", todos o sabem, vem do nome de Charles Lynch, um político e dono de plantações da Virgínia, que, enquanto juiz de paz, organizava milícias durante a Revolução Americana para liquidar os partidários da Coroa britânica em acções punitivas espontâneas, não previstas na lei nem ordenadas pelos tribunais. Mais tarde, no Deep South, a justiça popular e a violência das multidões dirigiram-se contra os que defendiam a abolição da escravatura e só após a Guerra Civil passaram a ter por alvo os negros indefesos. Segundo o Tuskegee Institute, numa estatística que certamente peca por defeito, terão sido linchadas 4743 pessoas de 1882 a 1968, das quais cerca de 1300 foram classificadas como "brancas" ou, melhor dito, "não negras", porquanto essa categoria abrangia também os asiáticos, os índios e os mexicanos, o que permite concluir que, na esmagadora maioria, os linchamentos eram crimes de ódio racial, perpetrados sobretudo nas regiões ou nos condados mais pobres do país, sendo, curiosamente, motivados com frequência por razões políticas: um estudo de 2019 concluiu que eles aumentavam de frequência nas vésperas de sufrágios, e em especial nas áreas em que o Partido Democrata enfrentava dificuldades eleitorais. Em muitos casos, as vítimas não tinham cometido qualquer delito, eram inocentes escolhidos ao acaso sempre que alguém decidia que era altura de dar um correctivo aos negros, matando dois ou três desgraçados para atemorizar o resto da comunidade. Não raro, arrancavam-se os olhos das vítimas, decepavam-lhes os braços ou as mãos, cortavam-lhes os órgãos genitais e exibiam-nos à multidão em delírio, que disputava com fúria, como se fosse um troféu de caça, o pénis, os dedos ou as orelhas dos linchados.
Diz-se que o autor de Strange Fruit se inspirou, muito provavelmente, na fotografia horrível do linchamento de dois jovens negros em Marion, no Indiana, em Agosto de 1930, uma imagem que mostra os seus corpos mutilados e pendurados perante uma turba que sorri e graceja em seu redor. Pela voz de Billie, a música tornar-se-ia um "documento histórico", como já a definiram ("uma das dez músicas que mudaram a História"), um hino maior, poderosíssimo, contra a discriminação dos negros e a prática dos linchamentos, e seria interpretada por nomes tão variados como Nina Simone, Sting, Siouxsie and the Banshees, Dee Dee Bridgewater, Tori Amos, Cassandra Wilson ou os UB40. Por estranho que pareça, Strange Fruit surge numa cena de sedução de Nove Semanas e Meia, o célebre e inenarrável filme em que Mickey Rourke contracena com Kim Basinger. Billie Holiday, que lhe deu voz e fama, não gostava de a cantar, dizendo que lhe fazia lembrar o pai, mas aceitava fazê-lo, pois estava ciente do seu poder e da sua importância para a defesa da causa dos negros da América. Os donos do Café Society tinham planeado ao milímetro o momento em que era cantada, no final das actuações: todo o serviço de mesa parava, os empregados ficavam imóveis e em silêncio, as luzes da sala eram apagadas, deixando-se apenas um projector sobre o rosto da cantora e, por muito que o público pedisse, não havia lugar a encores ou regressos ao palco, nem para agradecer o aplauso. Depois de Strange Fruit, a sala do Café Society mergulhava num silêncio total, num vazio carregado de simbolismo. Os presentes, que tinham saído à noite para se divertirem e ouvirem música ligeira, nem sempre apreciavam aquela música, também ela um estranho fruto. Ainda hoje, Strange Fruit constitui um objecto incómodo, que não figura em muitas antologias de Billie Holyday nem é transmitida com frequência pelas rádios. A Columbia, sua editora, recusou gravá-la e Billie teve de o fazer na Commodore Records, uma pequena chancela de esquerda que funcionava numa loja de discos da Rua 42. Sem ser um sucesso tremendo, o disco venderia bem, chegando a 16.º lugar nos tops e, sobretudo, sendo usado pelos movimentos de defesa dos direitos dos negros, com o NAACP à cabeça, para reclamar a aprovação de uma lei federal que proscrevesse a prática dos linchamentos. Assim, foram enviadas centenas de cópias de Strange Fruit aos congressistas de Washington. Em vão. Até hoje, não existe uma lei que proíba especificamente o linchamento (havendo, naturalmente, muitas outras que criminalizam o homicídio, as ofensas corporais, etc.).
Ao fim de nove meses de actuação no Café Society, Billie Holiday foi cantar para outras paragens, para os clubes de jazz da Rua 52, onde a música se mesclava com um intenso odor a marijuana e a haxixe (conta-se que, uma noite, um polícia montado pediu ao dono de um desses clubes que não deixasse os clientes fumar marijuana à porta, pois o seu cavalo ficava inebriado com o cheiro sempre que por lá passava...). A "caça às bruxas" de J. Edgar Hoover fez desaparecer a clientela do Café Society, que encerrou portas no início dos anos 1950. Hoje, Strange Fruit é evocada por muitos activistas negros, como Louis Farrakhan e os seus discípulos, muitas vezes à mistura com um discurso que diaboliza todos os brancos e pretende convertê-los em objectos de ódio e desdém. Contudo, como notou David Margolick num livro há pouco reeditado em França (Strange Fruit. Biographie d"une chanson, Éditions Allia, 2021), os que usam a canção para atacar os brancos, todos os brancos, deviam ao menos saber que Strange Fruit, letra e música, foi criada por um branco, Abel Meeropol, um judeu que usava o pseudónimo Lewis Allan, os nomes dos dois filhos, mortos prematuramente. Meeropol tinha uma vida dupla: com mestrado em Harvard, dava aulas no liceu De Witt Clinton, no Bronx, onde foi professor de James Baldwin e Countee Cullen, mas, a par disso, era um empenhado militante comunista, partidário do casal Julius e Ethel Rosenberg, cujos filhos adoptou depois da morte dos pais na cadeira eléctrica. Mais tarde, abandonou o partido comunista, mas permaneceu simpatizante de esquerda e, em simultâneo, autor de sucessos musicais como Strange Fruit, claro, mas também The House I Live In, cantada por Frank Sinatra, ou Apples, Peaches and Cherries, êxito de Peggy Lee que em França seria traduzido por Sacha Distel como Scoubidou, atingindo o primeiro lugar nos tops de vendas desse país.
Que o principal hino de defesa dos negros tenha sido concebido por um branco do Bronx, filho de imigrantes judeus vindos da Rússia, é algo que deveria fazer pensar muitos dos activistas do nosso tempo, esbirros da cultura woke. Há pouco, li um livro recente, horrível de mau no conteúdo e na tese central, Porque Deixei de Falar com Brancos sobre Raça, de Reni Eddo-Lodge (Edições70, 2021). Ao contrário do que o título sugere, a autora não defende propriamente que os negros não devem de todo conversar com brancos sobre questões de raça ou etnia. O título é, pois, um truque publicitário para gerar polémica e falatório, sendo a provocação e o escândalo, infelizmente, expedientes muito em voga nos activismos contemporâneos. O que Reni Eddo-Lodge sustenta, isso sim, é que os caucasianos, nunca tendo experienciado a discriminação racial da mesma forma do que os negros, não conseguem senti-la em toda a sua amplitude e extensão e, como tal, não estão tão habilitados como os afrodescendentes para abordar esse tema. Em tese, pode até admitir-se a ideia, mas não as consequências, pois, levada ao limite, ela implicaria que a história do Holocausto só poderia ser escrita pelos sobreviventes dos campos nazis ou que, nos nossos dias, ninguém poderia fazer a história da escravatura, porque, de facto, ninguém a viveu e sofreu na pele, seja branco ou negro. Entendamo-nos: não há direitos específicos de negros ou direitos próprios de brancos - há direitos humanos, ponto. O que poderá existir, quando muito, serão medidas de discriminação positiva, quotas ou outras, para compensar minorias pelas injustiças de que foram alvo ao longo da história, mas isso é outra conversa. Como é evidente, ninguém poderá ser impedido, devido à cor da pele, de pronunciar-se sobre o racismo e de combater a discriminação, como os exemplos de Abel Meeropol e de Strange Fruit tão exuberantemente mostram. Defender o contrário é racismo. E o racismo, todo ele, venha de onde for, é sempre execrável, miserável. Eis um fruto bem estranho, que nunca devemos esquecer.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia