Um esteta com sentido de humor

Personagem incontornável de salões ilustres, foi decorador dos palácios  do marajá de Jaipur e dos barões de Rotschild, de hotéis e de embaixadas
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Viveu em Madrid nos últimos 50 anos Duarte Maria Egas de Avillez Pinto Coelho. Perfeccio-nista das coisas e das pessoas, humanista, filantropo, foi um artista de enorme talento. No passado domingo, com 86 anos, desapareceu este português estruturado, que defendeu o prestígio do nosso país em todos os meridianos que tocou.

Desconcertante, situado entre o carácter generoso, a inteligência irónica, o talento do esteta, o snobismo culto e um atrevido sentido de humor, foi um dos espíritos portugueses "estrangeirados" mais universais, rebeldes e cosmopolitas da sua época.

Genial decorador de interiores reconhecido mundialmente, era personagem incontornável dos salões ilustrados da cultura, política, e finança de Madrid, Londres, Paris, Washington e Nova Iorque. Nascido de uma família portuguesa fidalga, depois da agitação cosmopolita de Paris, ombro a ombro com as celebridades das artes do pós-guerra, fixou-se em Madrid, onde depressa se destacou. Próximo do presi-dente Hastings Banda, do Malawi, país de que foi cônsul em Espanha durante muitos anos, ali assinou o Palácio Presidencial (hoje Parla-mento) e numerosas outras obras monumentais. Entre infindáveis exemplos, na Índia, decorou o palácio do marajá de Jaipur; em França, o dos barões de Rotschild, embaixadas de Portugal em diferentes países, o Grémio Literário, em Lisboa. Em Espanha, deixou o seu estilo marcado em centenas de residências, hotéis e edifícios emblemáticos.

O seu sentido de mecenato fez--se sentir em Trujillo. Rodeado pela escritora e pintora americana Fleur Cowles (amiga de Auden, Cocteau, Lucian Freud, Cary Grant), pelo museólogo Xavier de Salas, referência da cultura espanhola do século XX, pelos condes de Romanones, epítomes da aristocracia castelhana, e pelos marqueses de Santa Cruz, celebrizados pela estada em Londres como embaixadores de Espanha, dinamizou a brilhante recuperação da histórica Trujillo na Extremadura Espanhola.

O surrealismo de Duarte marcou Henry Kravis, protagonista do best-seller Barbarians at the Gate, insaciável tubarão norte-americano da KKR (recente troféu: a cadeia Boots, no Reino Unido). Junto com o mito do universo da moda, Oscar de La Renta, viajaram no jacto particular de Kravis, com mais seis influentes casais nova-iorquinos para visitar Duarte em Madrid no seu palácio da Calle Dom Pedro. Este ofereceu-lhes um jantar esplendoroso, com realezas, titulares espanhóis e três ou quatro portugueses de que Duarte muito gostava, entre os quais o seu inesquecível sobrinho, o pintor Luís Pinto Coelho. Já no sumptuoso salão, depois do jantar, Duarte apercebeu-se da passagem do camião do lixo. Desapareceu, para reemergir acompanhado pelo guarda- -nocturno, e por cinco homens suados, com os fatos-macaco cor de laranja abertos até à cintura, algo cheirosos: os homens do lixo. Apresentou-os aos convidados, mandou-lhes servir champanhe em taças de cristal, todos fizeram uma saúde. Ali permaneceram uns vinte minutos, para saírem imperturbáveis, regressando, divertidos, ao seu trabalho. Foi um episódio teatral, florentino, marcado pela abrangência social de Duarte, e pelo seu sarcasmo/ironia, gesto emblemáti- co, misto de Salvador Dalí, e do espírito revolucionário do Fellini 8 ¼. Podia ter esses comportamen- tos: era tanto amigo próximo da gente do seu bairro madrileno, como visita frequente de Ronald e Nancy Reagan em Washington, cujos convites chegavam sempre com o nome dele impresso em relevo.

Quando Juan Urquijo se casou com a milionária filipina Beatriz Zobel de Ayala, a família desta alugou o Hotel Ritz de Madrid por alguns dias, onde alojou os convidados vindos de Manila. Ali decorreu a recepção do casamento, decorada por Duarte Pinto Coelho, claro. Entre jantares e cocktails antecedendo o acontecimento, houve o incontornável jantar dos "cem poderosos" em casa dele. Seria meia-noite quando, de rompante, entrou uma animada troupe de 30 brasileiros, incluindo alguns travestis, gente atrevida. Actuavam num teatro de Madrid havia dias. Com essa "fusão" de choque, Duarte conseguiu criar mais um hipercontraste surrealista e felliniano, ultrapassando o tolerável, mas tudo dentro de "regras" que pautam aquele mundo.

No dia da final do Campeonato do Mundo de Futebol de 1982, em Espanha, Henry Kissinger veio a Madrid assistir ao jogo, e foi à Calle Dom Pedro almoçar. Duarte convidou Antonio Garrigues Walker, Javier Rupérez e a mim. Eu ia ao Bernabéu, e na altura conhecia bem Kissinger. Foram duas horas de debate com a "fonte" das grandes questões mundiais, promovidas por alguém que era obviamente muito, mas muito mais do que um genial decorador de interiores.

Dos seus melhores amigos, o último a desaparecer foi, há poucos meses, o pintor Pedro Leitão. Mas foi até ao fim acompanhado por outras fidelíssimas amizades. Destina-tário de condecorações de numerosos Estados, os seus próximos esgotaram os Gotha e os Who is Who deste mundo. Exemplos de uma interminável lista de íntimos, incluem intelectuais rebeldes (Francisco Umbral), pintores imortais (Dalí), realizadores de cinema (Buñuel), grandes actrizes (Grace Kelly, Isabella Rosselini), matadores de toiros (Ordoñez, Dominguín), intérpre-tes de flamenco (Lola Flores), grandes fadistas (Amália), figuras de Estado (Ronald Reagan, Rei Juan Carlos, Valéry Giscard d'Estaing), industriais históricos (Giovanni Agnelli). Duarte Pinto Coelho foi um poderoso defensor de Portugal no mundo, um embaixador de embaixadores, uma intangível influência internacional de grande eficácia. Portugal tem para com ele uma dívida de gratidão.

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