Um Estado igual aos outros

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Tudo começou em meados de 1945, quando um grupo de cientistas, que domesticara a energia nuclear, fez a primeira explosão experimental em Julho desse ano no deserto do Novo México. Contra o aviso dos responsáveis pela investigação, em 6 de Agosto foi lançada a primeira bomba sobre Hiroxima, e três dias depois uma segunda foi utilizada contra Nagasáqui. Seis dias mais tarde, o imperador do Japão pedia a paz, que por sua vez marcou o início de uma competição no sentido de os Estados adquirirem a majestade que recebeu o nome de superpotência. Um dos Estados que rapidamente alcançou o estatuto ambicionado pelo menos pelas soberanias que já anteviam a substituição da solidariedade das alianças pela competição nos quadros do globalismo foi a URSS. Tratava-se da mesma potência que pela Revolução de 1917 se perfilara como uma ameaça ideológica e estratégica para os também aliados ocidentais, porque não escondia a vocação de organizar um Estado em movimento nem a decisão de assumir um profundo desviacionismo dos padrões políticos e sociais, em nome dos quais fora conduzida a guerra e se pretendia organizar a paz. Naquela data, fundamentalistas da legalidade expressaram dúvidas sobre se a novidade política que sobrevivera às intervenções militares dos aliados podia ser considerada correspondente ao conceito de Estado que informava o sistema jurídico internacional, mas foi mais convergente o entendimento de que pelo menos não se tratava de um Estado igual aos outros, e que seria necessário reconduzi-lo à normalidade que o processo de paz visava restabelecer. A Segunda Guerra Mundial como que fez, por caminhos ínvios, reproduzir o trajecto da anterior, desta vez com a URSS aliada primeiro ao inimigo nazi, e depois aliando-se às democracias ocidentais, cuidadosas estas dos interesses antes dos princípios, para finalmente contribuir para a instalação da Ordem dos Pactos Militares que, por meio século, foi dominante. Mais uma vez a atitude dos aliados na NATO foi a de não reconhecer na URSS um Estado igual aos outros, envolvidos os dois blocos num clima chamado de guerra fria em que o risco fazia reunir a capacidade nuclear com a ameaça ideológica. O fim do regime soviético, marcado pela queda do Muro de Berlim em 1989, não evitou que a desmobilização do império fosse acompanhada pelos confrontos internos que todos os impérios averbam nos passos finais, ao mesmo tempo que os factos tinham já encaminhado a Europa para a construção de uma unidade política que a faça ultrapassar a definição de potência virtual. Os incidentes, sem dúvida severos, que marcam o processo de harmonização da Rússia com a nova realidade dos tempos, não escondem que é finalmente o modelo de Estado igual aos outros que se desenha como luz ao fundo do túnel. Este trajecto já não aparece marcado pela ameaça ou militar ou ideológica em relação aos Estados da União, incluindo os que ganharam a liberdade pela dissolução do império. Mas cresce a evidência de uma dependência energética europeia, que a situação tumultuosa noutros lugares acentua, ao mesmo tempo que os perigos agudos da desordem da governança mundial, com expressão cimeira no terrorismo global, definem de maneira nova a repetição da situação de ameaças que se verificou no passado. As sinuosas respostas desses tempos, que levaram a solidariedades oportunistas e frágeis, não podem servir de paradigma para as incertezas de agora. Por deficiente que seja a meditação europeia sobre a governabilidade dos alargamentos anunciados ou advogados, a urgência de uma linha de fronteira de países amigos, cooperantes, solidários, com perspectivas conjugadas, parece clara. A experiência de meio século de confrontos, que estiveram perto da subida aos últimos extremos, encontrou sempre a contenção necessária, de ambos os blocos militares, para que as consequências da tensão fossem absorvidas. O globalismo que lhes aconteceu, mais do que planearam, exige primeira atenção à experiência da contenção e reavaliação inteligente do património de queixas, que em muito é património de erros. Erros na avaliação dos riscos comuns actuais seriam talvez irreparáveis. A Rússia, finalmente a consolidar o estatuto de país igual aos outros, para usar a fórmula de há mais de meio século, é necessária e indispensável numa definição de segurança em relação a ameaças globais participadas, e também para que a dependência se transforme em cooperação para o desenvolvimento sustentado.

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