Um espanhol escreve sobre a política portuguesa entre 1913 e 1917
O meu amigo Jaime Sartorius ofereceu-me uma pequena joia do jornalismo espanhol, Mirando a Portugal, Madrid, 1917, de Félix de Llanos y Torriglia, um escritor e historiador que conhecia muito bem Portugal e o visitava amiúde. É dedicado ao marquês de Lema, nessa altura ministro de Estado da Espanha de Alfonso XIII, avô do meu amigo.
Em Lisboa, Llanos descia até ao Avenida Palace, o mesmo hotel onde ia também Unamuno e, dali, cavaqueava, diz-nos, com as gentes do povo, pelo Rossio e a Baixa, por Benfica, para ouvir deles diretamente as suas impressões. O Theófilo, como se refere a si mesmo, vai aos alfarrabistas da Calçada do Combro "por donde mis manos lusófilas van a la husma [procura]". Vai ao Politeama, ao Coliseu dos Recreios, ao Nacional (o Dona Maria). Tenta ver o Museu da Revolução, onde se exibe a carabina dum dos regicidas, mas está, regozija-se, fechado definitivamente. Este museu estava perto da Assembleia da República, a que ele ainda chama Palácio das Cortes.
A tese principal dos seus artigos, publicados no ABC de Madrid entre 1913 e 1917, é a necessária unidade das políticas externas dos dois países, mas sem cair em absoluto num iberismo absurdo. Nesses tempos Portugal era claramente aliadófilo, enquanto Espanha dormia "una siesta letárgica de la neutralidad sin programa...". Mas ele desaprova a entrada de Portugal na guerra, porque pensa que rompe o equilíbrio peninsular.
Como monárquico e conservador que era, critica a política da República Portuguesa (O Labirinto) e do desânimo dos que a trouxeram. Fala do afastamento de muitos dos dirigentes políticos, "que han ido desfilando hacia el ostracismo más o menos voluntario todos los que, partícipes en la responsabilidad de las causas, eluden participar en la responsabilidad de los efectos". Mostra um grande respeito e afeto pelo presidente Arriaga, quando se demite, e depois no seu falecimento; para ele era um dos melhores, um honesto e sincero patriota. Descreve as lutas entre monárquicos e republicanos, os primeiros acusados de "patricídio" por gostarem mais de Alfonso XIII do que de Afonso... Costa. E diz que iam todos contra todos, Alpoim contra Vilhena, Ferreira do Amaral contra Teixeira, etc.
Num artigo de 1913, no aniversário do regicídio, conta a sua visita a São Vicente da Fora, onde no Panteão dos Bragança pode ver através dum furo os crânios do rei e do infante esburacados pelas balas, visão sinistra e macabra que o deixa tremente, "con el espíritu ensombrecido, el estómago revuelto y el olfato perturbado".
Há dois artigos, O perigo hespanhol e O perigo português, nos quais conjura os preconceitos recíprocos. De Llanos resume-os em duas palavras, receio dos portugueses, desdém dos espanhóis. Segundo ele, o chamado perigo espanhol era só uma tática partidária agitada pelos "carbonários de la orilla del Tajo", como chama aos maçons. A isso tem de adicionar os boateiros, ("defende a tua pátria/ odeia o inimigo/ despreza os boateiros/ vigia os espiões") que falavam que o Weyler descia com 80 mil alemães ou das divisões inglesas disfarçadas de ceifeiros que tomariam conta do Algarve para chegar a Gibraltar.
São especialmente curiosas as suas crónicas - ele viajava sempre no "tren correo" - depois da mobilização portuguesa. Descreve as cenas em Abrantes, Tancos e Entroncamento, assim como uma certa preocupação na Espanha ante a possibilidade de ter de dar passagem às tropas portuguesas a caminho da França, o que é desmentido porque a Inglaterra facilitaria o seu transporte marítimo, e dá de exemplo os 1700 soldados que tinham embarcado no dia anterior para Moçambique (junho de 1916) para defender a fronteira contra a África Oriental Alemã, Tanganica.
Numa das suas crónicas cita um thalassa (monarquista), um carbonário (republicano) e um espanhol que mora em Lisboa. O thalassa pensa que a Espanha deveria ter ajudado a restaurar a monarquia, o carbonário (como Llanos chama ao republicano) desconfia: "Nós confiamos, sim, nas suas leais intenções de hoje, mas, como afirmar desde já que estamos certos de quais serão amanhã?" Finalmente, o espanhol que mora em Lisboa diz que "precisamos de fazer diariamente profissão de fé na independência lusa. Ao mais que se acede é a uma espécie de casamento com separação de bens".
Curiosamente, mesmo se não havia uma censura formal estabelecida, Llanos queixa-se de que os jornais espanhóis onde apareciam os seus artigos não eram distribuídos em Lisboa nesse dia. Mas eram lidos em Espanha, onde nada do que acontecia em Portugal era indiferente.
Félix de Llanos alerta contra o iberismo, que afirma ser contraproducente, e anima os espanhóis, pelo contrário, a não hesitar em ter uma frequente comunicação com Portugal; "prestad atención a su literatura; recorred sus bellísimas tierras; visitad sus monumentos; husmead en los rincones de su historia las huellas conmovedoras de la nuestra".
Ironicamente para nós, hoje, em 2022, no epílogo fala da necessidade dum enlace rápido entre os dois portos principais da Península, Lisboa e Barcelona. Se soubesse que já nem comboio há entre Madrid e Lisboa!
Don Félix de Llanos tinha a Ordem de Cristo e foi correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. As suas crónicas são mais uma prova para desmentir o mito das "costas voltadas".
Escritor espanhol que vive em Portugal