Um encontro com Ingmar Bergman "A Meio da Noite"
A certa altura, a meio do processo criativo de A Meio da Noite, depois de ter (re)visto mais de 50 filmes e de ter lido vários livros sobre Ingmar Bergman, a coreógrafa Olga Roriz viajou até à ilha de Farö, na Suécia, para onde o cineasta se mudou em 1966-67, onde viveu e morreu, em 2007, e onde se encontra sepultado. "Foi muito importante estar ali, naquele sítio. Parece que estamos dentro dos filmes e vemos as sombras daquelas personagens", conta Roriz, que esteve na ilha em outubro do ano passado acompanhada do realizador João Rapozo, que faz o vídeo que aparece no espetáculo.
Bergman apaixonou-se pela ilha quando estava a procurar sítios para rodar Em Busca da Verdade. Fez lá vários filmes, incluindo A Paixão de Ana, a série Cenas de Um Casamento e dois documentários sobre a ilha. Era o dono do único cinema de Farö. Para Olga Roriz esta foi uma experiência importantíssima: "Estar nas paisagens dos filmes, na praia onde foi filmado o Persona, na casa onde foi feito o Vergonha e, depois, para finalizar, limpar as folhas secas da campa de Bergman. Foi muito forte. Essa sensação eu não consigo trazer para o espetáculo."
Talvez não. Mas A Meio da Noite, que se estreia no festival DDD - Dias da Dança, no Porto, e depois irá em digressão pelo país, com passagem pelo Teatro Camões, em Lisboa, em outubro, é um espetáculo que tem Bergman do princípio ao fim. A ideia surgiu a propósito das comemorações dos 50 anos do filme A Hora do Lobo (1968), aquela hora em que morrem mais pessoas e em que nascem mais bebés e em que tudo é possível. Mas Olga Roriz não se quis ficar por esse filme e foi buscar inspiração a todo o Bergman - vida e obra. Porque, explica, há "uma impressão de Bergman em todas as suas personagens": "O autor é indissociável da sua obra. Ele traz toda a sua vida privada, a família, os irmãos, os amores, as separações, as doenças, todas as suas vivências, os demónios, os medos, o medo da morte que ele tinha, traz tudo isso para os filmes e não o esconde." Portanto, falar dos filmes é também falar do homem.
"O Bergman foi um autor que passou por mim, como passou por muita gente, aos 20 e tal anos. Lembro-me perfeitamente de ter visto o Persona e não ter percebido nada. Vi os outros filmes e achava as mulheres muito bonitas", conta a coreógrafa. O verdadeiro fascínio surgiu mais tarde, já com a série Fanny e Alexander (1982). A partir daí foi acumulando material sobre o dramaturgo, encenador e cineasta que agora, finalmente, pôde usar.
"Claro que os filmes dele são a minha base para este espetáculo, mas não queria que fosse só isso. A ideia era juntar os bailarinos à volta de uma mesa, onde eles vão pesquisar sobre o Bergman e começar a experimentar cenas para a construção de um espetáculo. Foi isso que nós fizemos de facto e é isso que reproduzimos aqui." Portanto, em A Meio da Noite estamos sempre entre a mesa e o palco, entre os atores e as personagens, entre Ingmar Bergman e a visão que temos hoje, aqui, dele.
"O que é mais forte na obra de Bergman é a existência humana. A dificuldade que o ser humano tem de se entender a ele próprio, primeiro que tudo. Com o Bergman os outros nunca são entendidos. Cada pessoa fica sempre só com aquele conflito interno", diz Olga Roriz.
E, depois, há "aqueles atores todos maravilhosos" e a maneira como ele os filma. "Não há nada mais bonito do que a Liv Ulman a olhar para o Bergman", diz-se em A Meio da Noite. E no palco evocam-se esses "monólogos intermináveis que aqueles atores têm para a câmara, portanto, para si próprios. Porque eles não estão a falar connosco", explica Olga Roriz, que também trabalha o grande plano, com as caras dos bailarinos projetadas num telão ao fundo, durante grande parte do espetáculo.
Naquelas duas horas, é possível reconhecer muitas personagens de Bergman e referências a cenas dos filmes, mas Olga Roriz não quer que isso torne o espetáculo hermético. "Não é preciso ter visto os filmes para perceber", garante. "Há coisas universais."
No início dos anos 1990, Bergman esteve com a sua companhia em Lisboa para apresentar, no Teatro Nacional D. Maria II, integrado no Festival Internacional de Teatro, o espetáculo A Marquesa de Sade. Olga Roriz foi com a filha Sara, ainda muito pequena. "Estava toda a gente na sala com auscultadores porque havia tradução simultânea. E eu disse à Sara: "E se não usássemos os auscultadores? Eu já te contei a história, vamos só ouvir estes atores fantásticos a falar." E foi uma experiência maravilhosa." E é um pouco dessa experiência que tenta reproduzir aqui. Os atores tiveram aulas com uma professora sueca e dizem algumas frases naquela língua que, para quase todos no público, será incompreensível. Não interessa o que dizem. É como música. Como mergulhar num filme de Ingmar Bergman.
Em Destaque nos Dias da Dança
- (B)reaching Stillness
A coreógrafa Lea Moro, que trabalha em Berlim e Zurique, traz ao DDD esta peça de 2015, com três intérpretes que dançam ao som da Sinfonia da Ressureição de Mahler. Hoje, às 22.00, Auditório Campo Alegre, Porto.
- The Lonely Tasks
Estreia a nova criação da coreógrafa portuguesa Mara Andrade, que é também a única intérprete. São, como o título indica, tarefas solitárias. 28 e 29 abril e 5 e 6 de maio, Mala Voadora, Porto.
- Enchente
Mais uma estreia: agora de Luísa Saraiva. Enchente é uma peça sobre os comportamentos dos grupos em momentos disruptivos, como motins, saques de supermercados ou celebrações de campeonatos do mundo. Sábado, 28 de abril, 19.00, Teatro Municipal Constantino Nery, Matosinhos.
- Jungle red
Carlota Lagido estreia uma peça "sobre a nostalgia do paraíso" que tanto pode passar pelo norte de Portugal como pela Síria ou pelo Irão. 1 de maio, 22.00. Teatro Municipal Constantino Nery, Matosinhos
From afar It was an island
Nova peça de João Fiadeiro que vai buscar o título a um livro infantil do designer italiano Bruno Mari, De Longe Era Uma ilha, mas que não se apoia dramaturgicamente nesse livro - apenas na ideia de lonjura e perceção. 3 de maio, 22.00, Auditório Municipal de Gaia
- Inaudible
O coreógrafo Thomas Hauert e a sua companhia Zoo regressam a Portugal com uma peça para seis intérpretes e improvisações a partir do Concerto em Fá de Georges Gershwin. 5 de maio, 22.00, Teatro Municipal Constantino-Nery, Matosinhos.
- Quelle part Au Milieu de l"infini
Amala Dianor, bailarino de hip hop que se formou no Centro Nacional de Dança de Angers, reúne no palco três intérpretes cujas histórias têm origem no Burkina Faso, Argélia e Senegal. Neste espetáculo não há qualquer tipo de fronteiras.6 de maio, 17.00,. Palácio do Bolhão, Porto.
- Rumor
Nova criação de Joana Providência, inspirada no universo visual e conceptual do artista Christian Boltanski. 11 a 13 de maio. Teatro Nacional São João, Porto.
O Festival DDD - Dias da Dança, dirigido por Tiago Guedes, realiza-se entre 26 de abril e 13 de maio numa série de espaços no Porto, Gaia e Matosinhos (dentro e fora de portas). O programa inclui espetáculos, filmes, masterlasses e workshops.