Um é de mais
Tinha 18 anos e, acompanhada pelo pai, foi a um consultório em Aveiro, fazer um aborto. À saída, esperava-a a Polícia Judiciária. Polícias à paisana, à coca, à caça. A estratégia incluía vigilâncias e até escutas telefónicas! E é esta mesma polícia que a leva, imediatamente e à força, para ser sujeita a exames ginecológicos. Estado de direito? Não. Não há tempo a perder. Nem mesmo com a autorização judicial para os referidos exames. Feitos sem a ordem de um juiz e sem a solicitação do Ministério Público.
Como se não bastasse o inenarrável abuso, nove anos depois são os resultados destes testes que constituem a prova fundamental na sua condenação pelo crime de aborto. Isto é, o Estado valida estes exames, legitima a violação da intimidade desta e de mais duas outras mulheres, nestas circunstâncias. E ainda sentencia prisão.
Chamam-lhe exames, julgamentos, condenações. Nada disso. É enxovalho, acossamento e perseguição policial. Barbárie. Com esta lei que é, de facto, aplicada, as mulheres são liminarmente criminalizadas. E privadas de direitos fundamentais. As mulheres que, por causa da moral, são obrigadas a recorrer ao aborto clandestino, são depois penalizadas por o ter feito. E uma clínica numa avenida central de uma das maiores cidades portuguesas é uma visão contida. As mais favorecidas vão a Espanha. As outras têm vão de escada, infecções, risco de vida. Devassa sancionada pelo Estado.
É este o país que temos. A lei que existe. Com as consequências que encerra, não assumidas por quem defende a sua manutenção. E não adianta dizer que não vale a pena mudar a lei porque ela não é aplicada. É aplicada, e de que maneira! E mesmo que não fosse. Não temos suficiente lavra de leis de gaveta? A hipocrisia vai até onde?
Todos os que, à esquerda e à direita, se opõem à criminalização das mulheres que abortam só podem defender à alteração à lei. Bem ou mal, houve um referendo e vai haver outro, não obstante os anteriores tropeções presidenciais. A prioridade só pode ser a efectiva e duradoura alteração à lei. E mais nenhuma outra.
Estas mulheres abortaram em 1997 e foram condenadas agora. Tivesse esta questão sido resolvida, como já deveria ter sido, e estes processos fundamentalistas teriam sido evitados. Mais um que seja, é de mais. Venha o referendo, mesmo que seja já tão tarde.