Um dia nas notícias: o olhar de Matti Dubee através do DN

O escultor canadiano e finlandês dedicou-se durante três meses à criação de oito esculturas de papel baseadas na edição de 10 de junho de 2022 do Diário de Notícias. E feitas com 20 quilos do mesmo jornal. No atelier onde desenvolveu o trabalho, Matti Dubee contou a experiência.
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"Nos últimos três meses e meio, a minha vida inteira foi apenas este projeto", quem diz é Matti Dubee, artista plástico rodeado pelas oito esculturas que fez inspiradas no Diário de Notícias. Foram 20 quilos da edição de 10 de junho de 2022 que deram origem à série Um dia nas notícias, que agora está terminada. Um trabalho que o DN acompanhou, visitando o artista - que tem dupla nacionalidade: canadiana e finlandesa - durante três momentos do processo.

As esculturas de papel que fazem lembrar mármore são uma técnica criada por Matti Dubee em 2016. Quando tinha 19 anos, Dubee foi viver para a China para estudar a língua local e acabou por descobrir o gosto pela escultura. Depois de um curso na Universidade de Xangai sobre escultura, passou anos a criar uma técnica própria, onde o papel aplicado se parece com pedra mármore. Apelida-a de "Papel de Dali", o nome vem do significado da palavra Dali, "mármore" em chinês.

Com Um Dia nas Notícias, Matti Dubee quer passar uma mensagem. "Nunca antes tinha feito uma série assim com uma mensagem. Os artigos inspiraram comentários sociais e mais amplos. Com cada artigo. e por sua vez com cada peça, tentei contar uma história", explicou o escultor numa conversa com DN, enquanto preparava o papel e a cola numa fase inicial do projeto.

Escolheu o Diário de Notícias para ser o material principal desta série, por ser um jornal histórico e que acompanha a sociedade portuguesa há mais de um século.

Numa primeira fase, em julho de 2022, Matti ainda não sabia quantas esculturas iria fazer, sendo ainda um trabalho em processo.

Acabaram por ser oito esculturas, cada uma delas inspirada num artigo da edição de 10 de junho, mas com uma interpretação e toque pessoal de Matti Dubee. Enquanto falava com o DN, este fazia a escultura à qual chamou de Jogo Mental baseada na notícia "Portugal vence com recital de Bernardo Silva no centenário de Fernando Santos". A escultura mostra um jogador a chutar um cérebro em vez de uma bola, simbolizando a pedra do bom senso dos fanáticos do desporto. A posição do jogador é baseada num golo marcado por um jogador português durante o jogo da seleção contra a República Checa.

Na mesma altura, o escultor já tinha começado a peça chamada de Momento Perdido. Uma escultura que representa a notícia "Açores. Ecoturismo marinho rende 210 milhões por ano ao arquipélago", mas também numa experiência de Matti Dubee. Um golfinho a entrar dentro de um telemóvel, o artista representa a realidade de hoje, onde as pessoas se agarram aos telemóveis para gravar certos momentos, prendendo-os. "O golfinho está a entrar dentro do telemóvel porque na primavera eu estava em Albufeira e fui ver os golfinhos. Acho que era a única pessoa no barco que não estava a usar o telemóvel e apenas a apreciar o momento. Todos os outros estavam a apreciar as redes sociais",explicou o artista.

Os materiais utilizados para produzir a série são os já mencionados: os jornais da edição de 10 de junho de 2022 do DN, cola PVA e verniz transparente. A revista Evasões que foi publicada juntamente com essa edição serviu para as bases das esculturas. O material das folhas da revista não servia para misturar com a cola e o papel, explicou o artista. Para Matti Dubee, a maior dificuldade desta técnica é trabalhar com o papel molhado, porque este "parte-se e quando se usa papel tem de se pensar nas fibras deste material",explicou.

Quando o DN visitou Dubee numa segunda vez, as oitos esculturas já estavam feitas. Faltava lixar o papel de cada para criar o efeito mármore e passar uma camada de verniz.

Matti Dubee usa quatro máquinas para lixar o papel. No entanto, quando começou a fazer esculturas usava apenas as mãos e uma pequena lixa. "Demorava 20 a 25 horas. As minhas mãos acabavam também por ficar lixadas e sangravam. Depois comecei a usar luvas mas usava-as por dez horas o que fazia com que ficassem gastas. Depois adaptei-me a estas máquinas, onde demoro apenas 3 ou 4 horas", explicou enquanto usava a máquina com a lixa mais grossa na escultura Extremos, durante esta segunda fase.

Esta é uma escultura baseada na notícia breve "Portugal com maio mais quente desde 1931". O artista pretende chamar à atenção para as mudanças climáticas. Com a escultura a alcançar o sol, ou seja, uma estrela, fica presa na lama devido à seca.

Outra figura que o escultor estava a lixar nesta segunda fase era O Leitor, a primeira escultura desta série. A peça mostra uma pessoa sentada a ler o jornal com as mesmas cores que a capa da edição de dia 10 de junho do DN, retratando o começo de um dia.

Dualidade é outra das esculturas que faz parte da série baseada na notícia "Gangues juvenis. Neste ano PJ já registou o triplo de homicídios e tentativas". Aqui Matti Dubee pretende alertar para a forma como às vezes podemos ver as crianças. Segundo o escultor, há algumas crianças que querem a paz e felicidade, mas têm de estar prontas para se proteger e outras usam a sua inocência e a sua fragilidade para enganar. A escultura é representada com uma criança a segurar uma flor, mas atrás das costas esconde uma faca.

"Não desenho as minhas esculturas quando tenho uma ideia. Normalmente, a ideia que tenho é o produto final que é a escultura. Nesta série foi mais fácil do que noutras que fiz no passado porque os artigos do jornal serviram como inspiração",afirmou o artista na entrevista da segunda fase do projeto.

Quando as esculturas estavam terminadas, o DN voltou a visitar Matti Dubee em outubro no Penha SCO, local em Lisboa onde o escultor tem estado a trabalhar na obra nos últimos três meses. Dos 20 quilos de jornais, apenas sobraram três exemplares da edição utilizada.

"Quero que as pessoas vejam também as notícias que foram a inspiração das peças",explicou.

Nesta última fase, o escultor explicou a peça Libertar baseada na notícia "Eutanásia novamente aprovada: É tempo de concluir este processo". A sua peça pretende retratar a agonia do corpo enquanto a consciência se liberta.

Já a peça Os Heróis Esquecidos usa o anúncio do Ministério da Saúde sobre o centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central. E pretendeu relembrar e homenagear os enfermeiros que colocaram as suas vidas em perigo. Matti Dubee escolheu o formato de busto para esta figura por ser o formato mais utilizado para celebrar as celebridades.

A notícia "Estrangeiros que lutaram por Kiev condenados à morte no Donbass" serviu de inspiração para a peça Desafio, a que Matti considera ter sido a mais complicada de esculpir. O artista tenta com esta escultura demonstrar como as forças da Ucrânia e dos que lá continuam a lutar. Na mão estão as cores da bandeira russa que tenta enforcar um defensor ucraniano, mas este luta com uma espada. "Quero que as pessoas pensem. Aqui a minha intenção era fazer uma história para mostrar os problemas do mundo e que as pessoas fiquem a pensar", disse o artista, depois das esculturas estarem terminadas.

mariana.goncalves@dn.pt

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