Mamã Esperança não sabia, mas foi lá no fim do mundo que ela me explicou Angola todinha. Tínhamos saído de Luanda de madrugada para ver o Zenza do Golungo, uma aldeola perdida no Bengo a quatro horas e meia da capital, três das quais nos obrigavam a percorrer uma picada de terra vermelha. Ali, o capim dobrava a altura de um homem e as acácias serviam de baloiço aos macacos que acompanhavam o percurso do jipe, como golfinhos no canal. Mamã Esperança, 71 anos, explicava que antes não havia macacos. Antes, disse ela, não havia nada..A primeira metade da sua vida fora passada ali, naquelas matas. Quando chegou a guerra, o povo teve de sair das aldeias e esconder-se na selva. Foram anos duros. Tinham de estar em constante movimento e por isso só comiam o que a selva lhes dava. Ervas, sobretudo, bagas, algumas, animais, raramente. Os macacos desapareceram, sacrificados ao esforço da independência..Esperança perdeu o nome naquelas matas. Viu morte e desgraça e aguentou tudo, escondida em buracos de árvores. Uma vez por dia, acendia o lume e preparava um caldo de vegetação daninha - foi assim que sobreviveu até Angola se tornar país. Só que depois da guerra veio mais guerra e os que tinham partilhado a mata com ela tornavam-se agora irmãos desavindos. Então partiu, se a vida era mão à frente e outra atrás, bem podia gerir a escassez em Luanda, onde os tiros tardavam a chegar..Era a primeira vez que voltava a casa em mais de três décadas. Assim que chegámos ao Zenza do Golungo, dirigiu-se às margens do rio e começou a apanhar uma série de ramadas. No dia seguinte, já em Luanda, usou essa vegetação para cozinhar o melhor calulu que comi na vida. No molho do funge cabia a história de um país que sofreu, e depois sofreu mais, e que agora começa a construir-se pacífico. "Um dia hás de comer macaco", atirou Mamã Esperança. Um dia Angola há de saber a tudo o que merece..Jornalista