Um curdo no lugar de Saddam não basta para matar referendo
O Iraque faz questão de ser ouvido sobre o "referendo ilegal no distrito do Curdistão" e a embaixada em Lisboa convocou os jornalistas para explicar que "o governo federal nunca aceitará que se ponha em causa a unidade territorial" do país. Quem falou - em árabe com tradutor para português ao lado - foi Ahmed Hussein al-Jaberi, encarregado de negócios. Ninguém tocou no assunto, mas a falta de embaixador tem que ver com a saída antecipada de Saad Ali, por causa do episódio de violência a envolver os filhos e um jovem de Ponte de Sor.
Foi a 25 de setembro que o chamado Curdistão iraquiano foi a votos, com o "sim" à independência a ganhar com mais de 90%. A região goza de enorme autonomia desde que em 1991 se revoltou contra Saddam Hussein e foi protegida pelos Estados Unidos. Depois da invasão americana em 2003 que levou à queda do regime baasista, a autonomia curda foi consagrada na nova Constituição. Nos últimos três anos, por serem a mais eficaz força a lutar contra o Daesh, os combatentes curdos passaram também a controlar zonas disputadas historicamente pelos árabes, como Kirkuk, o que agravou as tensões entre o governo regional em Erbil e o governo em Bagdad. A região de Kirkuk ser rica em petróleo complica mais a situação e o facto de ter sido abrangida no referendo fez soar alarmes em Bagdad, onde manda o primeiro-ministro Haider al-Abadi, cuja base de apoio é a maioria árabe xiita.
"A construção de um país à base de etnias já é do passado", declara Al-Jaberi. Os curdos, povo de língua indo-europeia e na sua esmagadora maioria seguidores do islão sunita, são cerca de 30 milhões no Médio Oriente e as suas ambições de um Estado próprio assustam tanto o Iraque como a Turquia e o Irão e ainda a Síria, onde a guerra civil e o sucesso contra o Daesh lhes permitiu também aumentar o território.
"Todas as ações serão para defender a unidade do Iraque e nunca contra o povo curdo, que faz parte do povo iraquiano", acrescentou o encarregado de negócios, falando de 20% dos 37 milhões de iraquianos. Reparei estarmos no gabinete do embaixador, forrado com madeira. Nas estantes identifico um manual diplomático e Os Lusíadas. E na parede está a fotografia do atual presidente, Fuad Masum, um curdo. Aliás, desde a queda de Saddam (executado) que o presidente do Iraque tem sido curdo - até 2014 foi Jalal Talabani, que morreu nesta semana.
Há quase 15 anos que não entrava neste palacete na Lapa. Da última vez que lá fui foi para pedir um visto. Aterrei em Bagdad a 3 de janeiro de 2003, mas o visto acabou bem antes de a guerra começar, a 20 de março. Pude testemunhar mesmo assim o que era o Iraque de Saddam, uma ditadura que controlava tudo, assente na minoria árabe sunita mas protetora de todas as comunidades, incluindo os cristãos, desde que não desafiassem o partido Baas (quando os curdos o fizeram, foram gaseados em Halabja). Nunca imaginei que naquela terra mesopotâmica viesse a manifestar-se algo tão fundamentalista como o Daesh. O retrato de Saddam, claro que há muito desapareceu da parede do gabinete, mas há funcionários que estão na embaixada há décadas. Servem o seu país.
Como sublinhou o encarregado de negócios, a comunidade internacional pronunciou-se contra o referendo. "O referendo ilegal prejudica a luta da coligação internacional contra o terrorismo", acrescentou Al-Jaberi. Mas a independência de facto de que goza já o Curdistão iraquiano dificilmente irá além disso. Há fações no próprio Curdistão iraquiano que não se entendem sobre o processo nacional, e quando se olha à volta, outras forças curdas externas ao Iraque também são de ter em conta, a começar pelo PKK, em revolta no Curdistão turco e com influência sobre o que se passa na Síria. Mas sobretudo nenhum dos países onde há curdos está interessado em que estes tenham um Estado, mesmo que num pequeno território, e por isso o governo de Bagdad enfrenta um desafio difícil mas gerível.