Um cineasta que trabalha sobre a herança da "série B"
A atração da Internet pelos tops de tudo e mais alguma coisa (incluindo as proezas mais ridículas) traz-nos, por vezes, revelações surpreendentes. Assim, se consultarmos um site cujo objetivo é elaborar a estatística das listas dos "melhores do ano" feitas pelos críticos de cinema dos EUA (criticstop10.com), deparamos com uma curiosa contabilidade referente a Boyhood, de Richard Linklater: num total de 802 listas consultadas, o filme surge em 536; mais do que isso, em 189 ocupa o primeiro lugar.
Para o pensamento cinematográfico americano, Linklater ilustra uma ideia de "autor" que resistiu a todas as convulsões da indústria e das tecnologias, sem alienar a originalidade do olhar. Ou ainda: através de uma obra de cerca de duas dezenas de títulos, sem qualquer estabilidade temática ou conceptual, ele relança um modelo de "artesão" independente e inventivo, à maneira clássica de Jacques Tourneur, Joseph H. Lewis ou Roger Corman.
Encontramo-lo a dirigir bizarros retratos da juventude como Dazed and Confused (1993) ou o novo Todos Querem o Mesmo, a par de Geração Fast Food (2006), uma parábola social sobre o consumo alimentar, sem esquecer duas magníficas experimentações com técnicas primitivas dos desenhos animados: Waking Life (2001), nunca lançado nas salas portuguesas, e A Scanner Darkly (2006).
Para lá de todos estes contrastes, perpassa pelo trabalho de Linklater a sensação, ao mesmo tempo irónica e angustiada, de que as personagens jovens tendem a viver num universo material e simbólico em que os adultos estão ausentes (ou de que se afastaram). Em janeiro de 2015, em entrevista à revista Rolling Stone, a propósito de Boyhood, ele reconhecia tudo isso como um reflexo ambíguo das atribulações da sua própria história familiar. Provavelmente, mesmo que isso nem sempre possa ser muito claro para o espetador, Linklater vive o cinema como uma interminável autobiografia.