Um cientista apaixonado e analfabeto

Um dos primeiros artistas a associarem-se ao despontar do movimento tropicalista brasileiro, Tom Zé edita segunda-feira, 1 de Novembro, a caixa 'Explaining Things so I Can Confuse You'.
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Tom Zé já foi, em quase 50 anos de carreira, estudante de música clássica vanguardista, activista político, aclamado como parte do movimento tropicalista brasileiro e subsequentemente votado ao esquecimento, enquanto outras luzes maiores do movimento ascendiam ao estrelato.

No início da década de 90, a editora Luaka Bop (de David Byrne, antigo líder dos Talking Heads) levou a cabo uma reabilitação da carreira de Tom Zé, que continua agora como lançamento, no dia 1 de Novembro, da caixa Studies of Tom Zé: Explaining Things So I Can Confuse You (ver caixa). Serão também reeditados em CD os álbuns Brazil Classics: The Best of Tom Zé (1992), Com Defeito de Frabricação (1998) e Estudando o Pagode (2005).

"É um engano absoluto, essa coisa do tropicalismo ter nascido dos Beatles e dos Rolling Stones", declara Tom Zé em entrevista ao DN, a propósito precisamente da corrente da música brasileira que, no fim dos 60, trouxe a influência do rock anglo-saxónico para os idiomas musicais brasileiros.

"Pode ter havido um ponto de contacto momentâneo entre os Beatles e o tropicalismo", concede no entanto o músico, "mas ninguém se juntou em 1967 e disse 'vamos fazer o tropicalismo'. Curiosamente, todos os tropicalistas eram pessoas do Recôncavo [uma região próxima do sertão brasileiro, no Nordeste do país], e é preciso perceber que essa zona do país vivia um analfabetismo histórico... De séculos!... Desde que as primeiras bandeiras dos colonos portugueses lá chegaram no Séc. XVI e por lá ficaram"s.

Natural do Irará (uma região sertaneja), Tom Zé fez, assim, parte da primeira geração de "cabouclos" que se deslocaram para ul, para a cidade de S. Salvador da Baía: "Nos anos 60, a Marinetti [uma marca de autocarros] já levava gente para São Salvador. E, como os nossos pais já tinham lojas e negócios, foi a nossa geração (a minha e do Veloso [Caetano] e do Gil [Gilberto]) a primeira a voltar em massa para o Sul, desde o tempo das bandeiras. Desde o século XVI."

Em 1964, já em S. Salvador, era preso pela ditadura militar que então tomava o poder no Brasil, e se manteria até 1985. À altura, Tom Zé era membro do CPC, o Centro Popular de Cultura, uma organização cultural com laços estreitos com o Partido Comunista Brasileiro.

Em 1967, quando Caetano e Gil faziam furor no festival da Música Popular Brasileira e desencadeavam a explosão do tropicalismo, Tom Zé colaborava já com os dois músicos, participando no ano seguinte no cartão de visita do movimento, a colectânea Tropicália: Ou Panis et Circenses (1968).

"Euclides da Cunha [escritor, antropólogo e ensaísta oitocentista, autor de Os Sertões, de 1902], que é quem me endossa os cheques (em termos de inspiração, pelo menos), disse que o nordestino é 'um cientista apaixonado e analfabeto'. Nos anos 60, naquela pobreza abjecta, quase medieval, o hábito do nordestino era considerar e observar, passar a ideia à pessoa ao lado dele e de seguida à comunidade", continua, acerca da forma como essa vivência influenciou os tropicalistas.

"Nós, que ficámos analfabetos mas apaixonados pela cultura dos nossos avós - pela cultura portuguesa - durante a nossa infância, é que rompemos com a educação aristotélica [regrada e alfabetizada, portanto] que a ditadura apregoava. Caiu um relâmpago nas nossas cabeças e começámos a interpretar o Brasil, a música e o mundo com esse olhar moçárabe e português", diz, lembrando que os Desco- brimentos ( e o "achamento" do Brasil) não teriam sido possíveis sem a síntese de culturas que se produziu na Península Ibérica.

"Então os outros aristotélicos - os da bossa nova - olharam para nós e disseram 'Isso não é o Brasil!', 'O que vocês estão a fazer é entreguismo!'. O que nós fizemos era o Brasil! O tropicalismo foi a chegada da linguagem de cartaz, da rapidez de processmento de informação. De um dia para o outro, em cada café, ao lado dos jornais, havia uma máquina de escrever, bicho! Foi outro dia", diz Tom Zé.

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