Um capítulo que se escreveu com Normas

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Ao longo de mais de dois anos, a elaboração de Normas substituiu o vazio de informação, enquanto o conhecimento se construía. Num equilíbrio entre o tempo da ciência e o tempo da ação foram desafiados os princípios e os métodos da medicina baseada na evidência. É hora de ambicionar uma visão mais ágil, inovadora, progressivamente mais profissionalizada, para as estruturas técnicas de suporte à decisão em saúde.

A leitura de um Tratado de Medicina é um hábito que se perpetua e desenrola numa sequência previsível de secções que, no seu conjunto, definem o conhecimento sobre uma doença. Definição, epidemiologia e fatores de risco, etiologia, fisiopatologia, manifestações clínicas, exames complementares e critérios de diagnóstico, terapêutica, prevenção, prognóstico e seguimento são as secções que encontramos.

Esse conhecimento, aliado a muitas outras fontes de informação, com destaque para as conhecidas guidelines, suportam a boa prática e a conduta dos profissionais de saúde.
Este hábito não é mais do que o primeiro passo quando estamos perante uma doença que queremos conhecer melhor.

Quando em dezembro de 2019 foi identificada a infeção por SARS-CoV-2, a procura nos tratados e nas guidelines internacionais não mostrava nada mais do que um vazio.
Ao longo de cerca de dois anos e meio, uma atividade científica concertada, e sem precedentes, a nível global, permitiu preencher, em direto, estas seções. Em Portugal, a Direção-Geral da Saúde, através do Departamento da Qualidade na Saúde, desenvolveu, emitiu e atualizou Normas que, sequencialmente, completaram o vazio.

A Norma 004/2020 definia, a 23 de março de 2020, a doença, os seus fatores de risco, as manifestações clínicas e os critérios de diagnóstico. Com o desenvolvimento e aprovação das primeiras vacinas contra a COVID-19, a Norma 002/2021 recomendou uma estratégia de prevenção e proteção, através da vacinação contra a COVID-19, iniciada, em Portugal, a 27 de dezembro de 2020.

A ocorrência de um síndrome pós-infecioso, particularmente significativo dada a magnitude populacional do número de casos de infeção, exigiram a definição de orientações nacionais, assentes em soluções locais, para a Condição Pós-COVID-19, na Norma 002/2022. Finalmente o desenvolvimento e aprovação de medicamentos antivirais e anticorpos monoclonais específicos para a COVID-19, colmataram a última secção. No dia 28 de maio de 2022, a publicação da Norma 005/2022 concluiu este ciclo de conhecimento.

Pelo meio, na desafiante fronteira entre a Saúde Pública e a Medicina Clínica ficam a Norma 015/2020 para o rastreio de contactos e a estratégia nacional de testes para a COVID-19, pela Norma 019/2020.

Estes são apenas os elementos visíveis de um processo complexo, metodologicamente desafiante face à incerteza, com uma necessidade diária de autossuperação e de inovação face aos cânones clássicos da medicina baseada na evidência.

Uma Norma não é apenas um papel, tão pouco é apenas uma guideline.

As Normas da DGS implementam modelos assistenciais. Durante a pandemia, podemos não ter dado conta, mas foi implementado o primeiro modelo assistencial baseado em telessaúde, de âmbito nacional.

O processo de elaboração de uma Norma da Direção-Geral da Saúde implica a identificação de necessidades, a compilação e análise crítica da evidência, a reunião de consenso entre peritos de várias áreas do saber, e ainda, tal como recomenda a Organização Mundial da Saúde e a OCDE, dois passos adicionais fundamentais: a avaliação da transferência para a prática (entre nós, o famoso "terreno"), através da auscultação de stakeholders, e a comunicação e suporte à implementação, através de parcerias e utilização de novos canais de informação e de algoritmos interativos.
Estes processos foram profundamente desafiados pela pandemia, desde logo pelas velocidades diferentes dos tempos da ação e dos tempos da ciência, e, claro, pela incerteza, que impôs a construção de recomendações pari passu, mesmo antes do conhecimento estar consolidado. No entanto, desta vivência surgiram visões, soluções e métodos inovadores que devem constituir um legado.

Este é o momento para investir, e firmemente, nas estruturas técnicas de suporte à decisão em saúde e à definição de políticas de saúde.

Que não se perca o conhecimento por causa da informação, como adivinhava T. S. Eliot.


Diretor do Departamento da Qualidade na Saúde, Direção-Geral da Saúde

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