Matay, um cantor que ajuda jovens a escolher o caminho certo

Ruben Matay ficou conhecido por partilhar com Dengaz a música <a href="https://www.youtube.com/watch?v=aGlg3S1noU8" target="_blank"><em>Dizer Que não</em></a>. Este fim-de-semana, no Festival da Canção, foi o mais votado, entre júri e público. O que muitos não sabem é que o cantor de gospel é também animador social da Santa Casa da Misericórdia, no centro social do bairro da Boavista. Um trabalho que o enche de orgulho
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"Eu queria dizer que não/ mas não consigo." Estes são os versos que tornaram Ruben Matay famoso. Mas se há coisa que o animador social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa não quer é "dizer que não" - dizer que não aos desafios que todos os dias encontra na ASE (Animação Socioeducativa) do Centro Social Polivalente do Bairro da Boavista, onde trabalha há 11 anos. A esta ocupação diária, Ruben Matay junta ainda os concertos com Dengaz - cuja banda integra -, o seu grupo de gospel e mais recentemente o seu trabalho a solo como cantor. Mais dois filhos pequenos - o mais velho ainda não tem 3 anos.

O trabalho no centro é feito com jovens do bairro. "Temos sessões de grupo que acontecem uma vez por semana ao final do dia, em que debatemos temas da atualidade, problemas que vamos identificando, preocupações que o grupo também traz ou que nos chegam através de equipas que trabalham connosco", explica o animador social de 31 anos.

Ao mesmo tempo, esta pequena sala com algumas mesas, computadores e um sofá serve também para que jovens descontraiam, joguem computador ou simplesmente às cartas. Evitando que andem "lá fora a fazer porcaria", como descreve Beatriz Oliveira, de 15 anos, num bairro onde o abandono e o absentismo escolar são problemas. Além de se promoverem atividades como aquela a que assistimos, a culinária, "que foi um pedido do grupo" e em que trabalham várias competências. Desde logo toda a discussão para escolher o que vão confecionar no pouco tempo que têm. O debate começa com sugestões como crepes ou pão com chouriço, para logo alguns dizerem que estão cansados dessas escolhas. No fim, a preferência recai num bolo de cenoura com cobertura de chocolate.

Antes de irem até à cozinha, no andar de baixo, os cozinheiros têm de pesquisar os ingredientes de que precisam e se está tudo dentro do orçamento. Uma decisão que é tomada antes das 15.00, quando o supermercado em frente abre. Depois é hora de definir tarefas e nesta tarde de sexta-feira até há novos voluntários para a cozinha.

E o que parece uma simples tarde a cozinhar é um momento em que "se trabalha um conjunto de competências em simultâneo". "A pesquisa, a matemática, depois vamos confecionar as coisas e no final há o prémio."

A Santa Casa como ponto de chegada

Dentro da sala, Ruben, que fisicamente não passa despercebido, como o próprio refere, não precisa do tamanho para se impor aos jovens. Nem precisa de levantar a voz. Conquistou o respeito do grupo, graças à admiração que eles têm pelo seu animador social, que lhes retribui o carinho.

"A minha vida sempre foi esta. Desde muito cedo que integrei grupos de jovens, fiz o curso Jovem Ator de Mudança, do IAC (Instituto de Apoio à Criança), entretanto fiz outro de jovem mediador comunitário. Mesmo em termos de liceu, integrei uma equipa de mediação de conflitos. Trabalhei no parque do Gil... Sei lá. Acho que isto sempre esteve presente na minha vida. É quase como uma viagem e isto aqui é a minha chegada." É assim que Ruben Matay descreve o seu já longo percurso no mundo da mediação e animação cultural.

Apesar de ser a sua chegada, Ruben reconhece que não conhecia o Bairro da Boavista antes de para aqui ter vindo trabalhar, em 2007. Depressa percebeu que este era "muito centrado nas pessoas que cá vivem". Desde então tornou-se mais fácil fazer que as pessoas saiam do bairro - já que não sentiam essa necessidade por terem acesso a todos os serviços dentro do mesmo (escola, creche, polícia, igreja, dois clubes de futebol...).

Com os 11 anos que leva de Bairro da Boavista, Ruben Matay já viu as primeiras crianças que acompanhou no centro serem pais e esses filhos quase já têm idade para irem para a ASE nos tempos livres. Acompanha a terceira geração e agora tem na sua sala irmãos mais novos dos primeiros jovens que acompanhou, o que faz que já se sinta da família. Mas com o passar de gerações, o animador social reconhece que um dos desafios do seu trabalho é ter capacidade de olhar para os problemas como se fosse a primeira vez.

Mediador de dia, cantor nas horas vagas

Tal como a mediação, a música esteve sempre presente na vida de Ruben Matay. Começou no grupo de gospel - a "outra família" -, depois integrou a banda de Dengaz e mais recentemente lançou-se a solo, tendo já uma das suas músicas numa das novelas da noite da TVI. E Ruben não hesita em usar a música também na ASE "como ferramenta". "Acabo já por juntar a minha vida musical profissional com a minha vida musical pessoal. Há um encontro entre estas duas músicas", define.

A conciliação para já não é muito difícil, garante, já que os concertos acontecem ao final do dia. E mesmo que tenha de apanhar um voo ou um comboio, Ruben faz tudo para não faltar às atividades do centro. "O esforço é este, é conseguir ter aqui esta plasticina e aqui aplica-se o "quem corre por gosto não cansa". A verdade é que dá para fazer isto."

Um esforço que compensa, pelo menos do ponto de vista do grupo de 15 jovens que acompanha. Eles não escondem o orgulho e sabem de cor as músicas do seu mentor. Que também lhes dá aulas de canto e viola quando a agenda deles permite, já que "ficam na escola até mais tarde e têm outras atividades".

As aulas de música têm também um carácter mais lúdico do que profissional. "Era necessário perceber um bocadinho mais do que eu percebo para dar aulas. O que fazemos é dar as bases para eles terem um conhecimento superior do que é o canto, a música propriamente dita." E no grupo há cantores e cantoras em potência. Mónica, de 13 anos, é um exemplo disso. Um bichinho que Ruben também alimentou de forma autodidata. "Em minha casa sempre se cantou. A minha mãe desde sempre que canta e os meus irmãos também", conta. Depois seguiu-se o gospel, que "é outra família com esta questão da música, portanto, o canto é a minha vida".

A fase seguinte foi chegar a backing vocal de Dengaz. Uma oportunidade conseguida graças a um amigo comum que estava na equipa de râguebi de Ruben Matay. Três anos depois de estar na banda, surge a oportunidade de fazer o dueto para a música Dizer Que não, um pouco por desafio do próprio Ruben. Sem uma voz para o feat, o animador sugeriu ser ele a fazê-la. Em jeito de brincadeira disse: "Puto, eu mato isso." E assim Dengaz acabou por se convencer que Matay tinha a voz certa para a música.

Foi o primeiro dos sucessos musicais de Ruben Matay ou, como o próprio diz, "foi a música que mudou a minha vida". Agora tem uma canção - "O Que Tu Dás" - na novela A Herdeira, da TVI, que já conta com 10 milhões de visualizações no YouTube. Ao mesmo tempo está já a pensar no seu disco em nome próprio e a lançar o seu segundo single.

Esta carreira é seguida a par e passo pelos seus meninos, que veem no animador um exemplo a seguir e sentem os sucessos de Ruben como seus. Ruben espera poder continuar a acompanhar o crescimento destes jovens, mesmo que a sua carreira na música se consolide. "Assusta-me que a música me tire tempo, porque eu faço aquilo que gosto e quero continuar. Estou cá há 11 anos e a Santa Casa permite-nos mudar de serviço de forma a manter a frescura necessária para garantir a boa qualidade da intervenção. Sei que cedo ou tarde vou ter de fazer essa mudança, mas sei que a parte da intervenção nunca vai sair de mim." E enquanto houver jovens que, perante o conflito, escolhem a via do diálogo, Ruben Matay vai sentir que está a fazer o seu trabalho.

Intervir nos bairros lisboetas

A iniciativa "Pessoas e Causas", uma parceria do DN e da TSF com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), pretende contar as histórias das pessoas que mudam vidas com o seu trabalho na instituição e as das vidas que foram mudadas. Esta semana visitámos o cantor Ruben Matay, que no trabalho é o animador Ruben Sousa, para conhecer a intervenção de proximidade nas comunidades locais, neste caso no Bairro da Boavista, em Lisboa. O Centro Social Polivalente do bairro disponibiliza Animação Sociocultural e Educativa (ASE) e também Centro de Dia e apoio domiciliário. Ruben trabalha com jovens, para desenvolver as competências sociais e pessoais certas, mantê-los na escola e motivados, com a ajuda de atividades desportivas ou artísticas.

(Artigo publicado originalmente a 29 de abril de 2018)

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