Um belíssimo adeus de Nanni Moretti a quem lhe deu vida

<em>Minha Mãe</em>, que amanhã se estreia nas salas de cinema nacionais, é uma homenagem do cineasta e ator Nanni Moretti à sua mãe
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"O ator deve ficar sempre ao lado da personagem." Recomendação persistente de Nanni Moretti, que Margherita (Margherita Buy), o alter ego do realizador em Minha Mãe, faz ecoar diante da expressão interrogativa dos atores de um filme em rodagem. O que quer ela dizer com aquilo? Tanto Moretti como Margherita, quando confrontados com o sentido, afirmam não saber: é uma advertência "inconsciente". Mas está longe de ser estranha. Afinal, Moretti não tem sido outra coisa nos seus filmes senão, simultaneamente, ele próprio e a sua personagem.

Com uma evidente proximidade a O Quarto do Filho (Palma de Ouro em 2001), em que o cineasta e ator italiano era o protagonista de um luto paternal - na altura, o filho tinha cinco anos e ele quis refletir, através da ficção, sobre o medo de o perder -, Minha Mãe volta ao tema da morte, desta vez, com motivo real (a mãe do realizador morreu quando ele estava a terminar Habemus Papam). E essa exposição autobiográfica não é nova na filmografia de Nanni Moretti, basta lembrar Querido Diário (1993), onde narra a experiência da doença, um linfoma de que se curou.

Um Nanni Moretti apaziguador

Habituados que nos deixou à sua personagem regular dos primeiros filmes, de ego acentuado nos acessos de fúria e discurso político de esquerda, eis que o vamos encontrar em Minha Mãe num papel periférico, e mais coerente com a figura do terapeuta, dos últimos filmes. Giovanni - assim se chama - é irmão de Margherita, a realizadora que atravessa uma crise pessoal, relacionada diretamente com a iminência da morte da mãe, hospitalizada. Moretti é então o baluarte desta circunstância de dor, é ele quem garante uma vigilância mais constante junto da cama da mãe, mantendo Margherita ao corrente do seu estado.

Na verdade, as mulheres são determinantes para o diálogo geracional que se cria no filme. Ada (Giulia Lazzarini), a grande figura matriarcal, não se confina a um retrato inerte, de adoração estéril, revelando-se antes um impulso intelectual (tinha sido professora de Literatura Clássica) no contributo prestado à neta, com lições de latim. Por sua vez, Margherita volta à casa onde cresceu, agora oprimida pela ausência da mãe, para estar mais perto das suas memórias, e também defrontar os seus fantasmas interiores. Que são muitos, assim como os pesadelos.

Melodrama de riso e lágrimas

Mas, no meio de tudo isto, há um filme em rodagem - sobre a revolta dos trabalhadores de uma fábrica vendida a uma multinacional - e a realizadora não desiste de o fazer avançar, procurando dar uma certa ordem à sua vida através desse envolvimento com a ficção. A chegada de uma personagem hilariante, o ator norte-americano Barry Huggins (John Turturro), que vem para o papel do novo patrão da fábrica, é uma adição muitíssimo perspicaz e distintiva da bipolaridade do cinema de Moretti: estamos perante um melodrama com personagens que nos provocam, com a mesma intensidade, o riso e a lágrima. Barry é um excêntrico incurável, mas também ele, um pouco como a mãe de Margherita, vai mostrar a fragilidade que se esconde por detrás da euforia.

Outros cineastas trouxeram ao grande ecrã situações de rodagem, fazendo destas matéria-prima para o argumento, nomeadamente Federico Fellini, com o mítico Oito e Meio (1963) e François Truffaut, com A Noite Americana (1973), mas o filme de Moretti consegue ser uma verdadeira novidade nessa linhagem. Minha Mãe, no conjunto sublime do elenco, na forma como torna universal uma dor íntima (até pela transposição para a dor coletiva, como é o assunto do "filme dentro do filme" - a revolta dos trabalhadores), e na sua inteligência estética, que joga pelo lado mais discreto, é um filme absoluto. E também do seu autor. Veja-se, por exemplo, a cena em que a filha de Margherita aprende a andar de scooter, ao som do sereno e caloroso tema Baby"s Coming Back to Me, de Jarvis Cocker - aquela é uma marca registada do cineasta, emblema de Querido Diário (e, por sinal, logótipo da sua produtora, Sacher Film). De facto, uma imagem de ternura com um convite explícito: "Faz-te à vida."

Veja o trailer:

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