Um Beethoven concreto e electrónico visto por Henry
Quarenta anos depois duma primeira e única visita, o compositor francês Pierre Henry (n. 1927) regressa a Portugal. A presença que falhou em Setembro, no último Festival Música Viva, concretiza-se agora, na abertura "informal" da Festa da Música 2005, no CCB, dedicada a Beethoven e seus amigos.
Hoje, ao princípio da noite, na Tenda (por detrás do Centro de Exposições), Pierre Henry irá "dirigir" duma mesa de mistura o remix da sua Décima Sinfonia. O público, no centro, ver-se-á rodeado de altifalantes, que difundirão esta obra com cerca de uma hora de duração.
Esta Décima Sinfonia é já um remix, uma reorquestração ou uma nova versão da Décima Sinfonia de Beethoven, composta pelo autor no final da década de 70 e estreada na Beethovenfest de Bona em 1979. Da "nova" obra, estreada em Julho de 1998, diz Henry ao DN ser "mais violenta, mais de hoje, com ritmos rock e ruídos de guerra" e compara-a a "um signo sonoro, um conto trágico deste início de século". Motivos para transformar o original de 1979 foram "a vontade de modernizar e tornar Beethoven actual, de acrescentar instantes do presente, sons que nos rodeiam", conjugada com "uma motivação estética, uma intensa força interior", cujo resultado foi "um novo gesto musical, forte e, ao mesmo tempo, sincero".
Um "novo gesto" que se quer definitivo, "tanto mais que acabo de compor uma Symphonie Jules Verne, obra em que os mesmos processos de trabalho foram aplicados às sinfonias de Bruckner".
Do processo de composição, conta Henry ter "levado um ano a estabelecer um repertório, um dicionário beethoveniano contendo todas as suas fórmulas de escrita - algo como um solfejo pessoal - que depois tratei como objectos sonoros isolados, concretos, aplicando-lhes as técnicas de montagem características do meu estilo".
Já no que respeita aos empréstimos melódicos, diz Henry serem "motivos muito curtos, que depois tratei um pouco à maneira dos leitmotive wagnerianos e que fundi muito intimamente com a minha própria linguagem", razão por que "muitos deixam de ser reconhecíveis". Motivos esses proveninentes "de todas as sinfonais de Beethoven", reconhecendo Henry o predomínio da Eroica (n.º 3) e da Coral (n.º 9), "porque são as que mais coisas acordam em mim". De resto, os "sons autenticamente de Beethoven tornam-se progressivamente raros, transformados, tratados ao longo da obra".
Henry quis, em conclusão, uma obra que fosse "um acto de amor, uma homenagem a um compositor que sempre foi muito importante para mim", um compositor que Henry diz "não vanguardista, mas sempre moderno, um compositor do tempo presente, sempre!". Daí Henry o considerar "o músico mais importante" da história da música, "junto com Bach e com Stravinsky, o qual tem, aliás, muitos pontos em comum com Beethoven".
É da própria natureza desta Décima Sinfonia ser tocada "em grandes espaços perante muito público". Da sempre problemática questão público-música contemporânea diz Henry que "a relação, comunicação com o público foi sempre para mim algo de muito importante, logo desde os anos 50", preocupação essa em que se inscrevem as suas incursões "na música para filmes, para coreografias (de Maurice Béjart) e mesmo para publicidade". Tudo dentro dum propósito de escrever "uma música simultaneamente erudita e popular".
Estará aí a explicação para certas aproximações, nesta Décima, a sonoridades da pop electrónica, à música techno, usando inclusive uma caixa de ritmos? Henry recusa qualquer filiação, mas agrada-lhe a techno "como fenómeno sociológico duma certa democratização do acto de fazer música". De resto, no vaivém de influências, Henry vê-se na posição de "credor", porque "eu é que fui útil para o modus operandi deles, quando, logo em 1950, comecei a usar todas as formas de deformar e tratar o som a partir de sons existentes, então como agora usando meios analógicos". Este último vocábulo define a técnica de Henry por oposição à "outra" electrónica, digital e informática "não faz o meu género", diz. "Espero que a evolução seja no sentido do meu caminho", continua, mesmo porque "essa música tem pouca poesia e dramaturgia, falta-lhe vida e humanidade, é uma música de fórmulas", justifica-se. E conclui: "eu fico no meu sector pessoal e não ligo muito ao que se passa à minha volta, musicalmente." A posteridade asseguram-na "a minha carreira de 60 anos de compositor, os discos, os filmes, os bailados para Béjart... isso não me deixa inquieto".