Um assalto esporádico ao estado da justiça portuguesa

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Ao escrever sobre a nossa justiça em cerca de 600 palavras devo começar por reconhecer que vivo fora do país há 8 anos - o equivalente a duas legislaturas. Para obviar esta condição de estrangeirado, cronicamente mal-amados ao longo dos últimos 200 anos da história de Portugal, consultei o Relatório de Avaliação dos sistemas judiciais europeus produzido pela Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (CEPEJ), do Conselho da Europa.

Segundo esse relatório (últimos dados referem-se a 2018), os obstáculos à eficiência e à eficácia na nossa justiça não são orçamentais; somos, aliás, dos países, no seu grupo de comparação, que mais despende por habitante; somos ainda dos países que tem uma apreciável taxa de esforço orçamental, tendo em conta os respetivos níveis de riqueza; e onde as despesas totais com tribunais, por habitante, continuam a crescer; e não há, repito, não há, qualquer carência de recursos humanos (o relatório revela bem quão anómalo é o nosso número excessivo de advogados...). Se não bastassem estes critérios mais clássicos, também no domínio das tecnologias de informação (TI), Portugal está na vanguarda, com uma taxa genérica elevada de implementação de TI, e com taxas elevadas no suporte à decisão, aos tribunais e na gestão de processos, e na comunicação com os tribunais. E não falta mesmo uma cereja em cima do bolo: m udecréscimo significativo do número de processos pendentes de natureza civil e comercial nos tribunais de 1.ª instância.

Apesar deste cenário bem civilizado, não haverá um português, uma portuguesa, que sinta a justiça como um direito ou como um serviço universal e acessível, que funcione. Para tal frustração nacional contribui, com certeza, o mediatismo das insuficiências em meia dúzia de casos espetaculares e de natureza criminal. Contudo, permito-me identificar duas outras razões que estão para além dessa espuma dos dias, e que o Relatório CEPEJ, num olhar mais atento, também revela.

Em primeiro lugar, há um indicador preocupante e surpreendentemente contrastante com todos aqueles outros indicadores positivos. Portugal salta à vista como o Estado, que no seu grupo relativo, menos gasta com os serviços do Ministério Público. É difícil compreender esse contraste, sem que se conclua tratar de uma opção política, desalinhada com o resto da Europa.

Em segundo lugar, a nossa justiça administrativa e fiscal está na iminência de falência de legitimidade. Estamos a falar da resolução de conflitos nas relações entre os particulares (cidadãos e empresas) e a Administração Pública. Em 2018 era preciso esperar 982 dias para obter uma decisão de um tribunal administrativo, sendo que, em 2016, se esperava 911 dias. A isto acresce a dificuldade em aceder às decisões de primeira instância. Repare-se que um dos primeiros critérios internacionais para definir um Estado como Estado de Direito é a publicidade das suas decisões judiciais. Onde não há essa publicidade, não há Estado de Direito. Em Portugal, em 2021, não há suficiente publicidade das decisões judiciais que resolvem os conflitos entre o Estado e os particulares.

É assim de esperar que estas duas realidades se traduzam em compromissos eleitorais claros, quer do PS, quer do PSD. Tal como assinalei no Congresso da SEDES, é crucial que o próximo Ministro da Justiça tenha como primeiríssimas prioridades políticas, quer a reforma da justiça administrativa e fiscal, quer o reforço orçamental do Ministério Público. Sobretudo quando a administração pública se prepara para implementar, em apenas 8 anos, o maior fluxo financeiro da história de Portugal. Afirmo-o estando bem consciente de que estas 600 palavras poderão ser aquilo que António Sérgio já dizia a propósito dos estrangeirados: um "assalto esporádico" ao estado da justiça portuguesa, por uma espécie de "pirata benemérito".


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