Um adolescente estranho, esse macaco nu

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Desmond Morris é um grande viajante, capaz de pegar em três meses de vida e partir para uma volta ao mundo, e fazê-lo outra vez e outra vez. Quando está em Inglaterra, pinta no ateliê em casa, uma pala e uma lente presas na testa, figuras indiscutivelmente da onda surrealista. Ou investiga e escreve. Não para de escrever desde 1958, com um momento alto quando em 1967 publicou O Macaco Nu, traduzido para 23 línguas e com 20 milhões de cópias vendidas.

Não o sabia pintor, tinha aliás esquecido a existência deste zoólogo e antropólogo e das suas discutidas interpretações do comportamento humano, mais empíricas do que sustentadas em provas científicas. Lembro-me da capa da edição de O Macaco Nu na Europa-América, livro que não li então mas que surgia envolto em empolgantes mistérios da sexualidade, coisa mais recente do que A Revolução Sexual de Wilhelm Reich, de 1930. Inesperadamente, tenho nas mãos o livro de Morris, na bela edição do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto.

O facto é que Desmond Morris, homem formado em Oxford, ofereceu ao museu grande parte do seu espólio científico e daí a reedição da sua obra, começando por A Tribo do Futebol (1985), com prefácio de José Mourinho. Para a capa de O Macaco Nu, foi escolhido o desenho da placa criada por Carl Sagan e a sua primeira mulher, Linda Salzman, e que viajou no exterior das naves Pioneer 10 e 11, para o caso de serem encontradas por outra espécie inteligente.

Uma das mais fortes críticas a O Macaco Nu veio das mulheres cientistas. Escreveu-o no tempo da explosão hippie, com a afirmação do amor livre, a emancipação das mulheres a pôr de pernas para o ar o recato da vidinha doméstica. E lá estava ele a insistir que os homens tinham desenvolvido a sua inteligência nas explorações de caça enquanto elas, bem, elas ficavam à espera tratando das crias e com um cerebrozinho menos brilhante. E sempre na mais fiel monogamia.

O encanto do livro permanece. Cientificamente ultrapassado na insistência em descartar a importância do adquirido versus o biológico, continua a ser uma leitura apaixonante. Mas estou certa de que as descrições minuciosas do ato sexual, melhor dizendo, heterossexual, num relato clínico, desapaixonado, foram sempre as páginas mais lidas.

Há muito mais teorização nesta visão dos humanos como produto de uma evolução biológica - "até mesmo nos nossos encontros sociais obedecemos às regras biológicas básicas dos nossos antepassados". Afinal, este é um dos livros de "divulgação científica" mais vendidos de sempre e Morris foi uma estrela da televisão, com várias séries de programas sobre a evolução e o comportamento animal.

Esta é apenas uma parte da obra de Desmond Morris, pois foi - continua a ser, aos 90 anos - muito prolífico nos escritos sobre arte e em particular sobre os surrealistas, a cujo grupo pertenceu. A primeira vez que expôs foi ao lado de Joan Miró, nos anos 1940. Só se conheceram largos anos mais tarde, era Morris curador do Zoo de Londres e Miró foi visitá-lo. "Vi sair do carro um homem baixo, imaculadamente vestido, que parecia mais um banqueiro ou um diplomata do que o homem que pinta como ele."

Conheceu bem os surrealistas, foi amigo de muitos e de outros artistas que não entraram no movimento, como Francis Bacon ou Henry Moore. As formas que pinta, os biomorfos, explica-os assim: "São órgãos internos tornados externos, que têm como habitat a tela, são carne mas não são carne, têm ossos mas não são ossos, pertencem a uma dimensão diferente." Ele próprio, confessa, era um adolescente estranho que pintou de preto todo o quarto e depois criou por cima formas de cores brilhantes, "tudo isto para intensificar os meus sonhos". Num dos sonhos, ele vê uma estranha criatura pendurada de uma árvore. O macaco nu, parece evidente.

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