"Um adeus Português"

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Era bom conversar com ele. Ele era um precursor de leituras. Foi ele que me indicou o Borges, o Guimarães Rosa, os Cem Anos de Solidão, sei lá mais o quê. Não falávamos de mulheres, nem de futebol, mas divertíamo-nos muito mesmo calados. Sei alguma coisa do caso de Nora Mitrani, que deu origem a um dos melhores poemas da língua portuguesa..." António Alçada Baptista, a cuja lembrança regresso com prazer, gostava muito de Alexandre O"Neill. E lembrou-me tantas vezes o carácter único de "Um Adeus Português", com pano de fundo no episódio de Nora Mitrani, que viria a terminar em desencontro forçado e tragédia. Havia nele o confronto permanente entre a lírica e o drama. Mas nesse caso houve ainda o choque entre a sociedade fechada e doente e os ventos que vinham de fora. Mas como o António tinha o sentido do mistério e da transcendência, estava certo de que só a um espírito muito especial, como o de Alexandre, seria permitido escrever: "Nos teus olhos altamente perigosos / vigora ainda o mais rigoroso amor / a luz de ombros puros e a sombra / de uma angústia já purificada". Afinal, não poderia ficar pela "cadeira / onde passo o dia burocrático / o dia-a-dia da miséria / que sobe aos olhos vem às mãos / aos sorrisos / ao amor mal soletrado / à estupidez do desespero sem boca / ao medo perfilado / à alegria sonâmbula à vírgula maníaca / do modo funcionário de viver". E o António dizia ainda, com lucidez crítica, que o Alexandre conseguira, como ninguém, "captar com mais subtileza o halo poético do quotidiano, o estofo lírico-épico-dramático que está por debaixo da banalidade dos dias". E vinha à memória, na distância, o exemplo de Nicolau Tolentino, que O"Neill tão bem conhecia. E a verdade é que também o seu "Portugal" é e será único em toda a nossa literatura. "Ó Portugal, se fosses só três sílabas, / linda vista para o mar..."

Agora deparamo-nos com um reencontro surpreendente. João Botelho traz-nos de volta, à sua maneira, Alexandre O"Neill com o Filme em Forma de Assim. O cultor da nossa melhor língua merece a melhor atenção e a melhor leitura. O poeta e cronista foi-se encarregando da vidinha sem se levar demasiado a sério. E o filme "está organizado como um sonho, estruturado como um musical e com textos, tanto ditos como cantados, que nos conduzem a situações inesperadas, caóticas e emocionantes, na tentativa de agarrar parte do que o inalcançável Alexandre O"Neill nos deixou". Com argumento de Maria Antónia Oliveira (autora de Alexandre O"Neill, Uma Biografia Literária, D. Quixote, 2005), seguimos o percurso de quem entendeu Portugal como muito poucos. Brincar com as palavras, com as pessoas (ah, Pacheco) e com a realidade é das coisas mais sérias que podem fazer-se. "É verdade. Sem pieguice, digo que sempre "sofri" Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar sem esperança (como disse um parnasiano qualquer: amar sem esperança é o verdadeiro amor..." E encontramos O"Neill um pouco por toda a parte: no surrealismo, na crónica, no fado (com uma "Gaivota" sentimental nos céus de Lisboa, na voz de Amália, por uma espécie de armadilha montada por Alain Oulman, que depois o levou à Formiga Bossa Nova, que é bossa nova, inicialmente para Isabel Ruth). Libertário, nunca foi capaz de se ater à burocracia, mesmo que se dedicasse à arte de seduzir pela palavra publicitária, porque "quando o burocrata trabalha é pior do que quando destrabalha"... "O que vou deixando escrito, ora me desgosta, enjoa até, ora encanta. Acontece certamente com os outros poetas, tenham estatuto ou não. Mas comigo talvez essa oscilação se dê com mais frequência. É que a invenção atroz a que se chama dia-a-dia, este nosso dia-a-dia, espreita de perto tudo o que faço".

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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