Um acontecimento excessivo
Se eu quisesse, enlouquecia." Esta é a primeira frase que li de Herberto Helder, é com ela que começa Os Passos em Volta. Dito de outra forma, mais caseira, é com ela que começam os passos em volta, o livro de 1963 que entrou na vida de várias gerações e se tornou companhia de dias inquietos, de viagens interiores, de recusas, de recusas. Nunca tinha lido nada assim, foi o que pensei e que ouvi de outros, que ainda oiço de outros quando alguém fala nesse livro. Ainda agora, que ele morreu e retomamos os livros, é isso que lá está. Nada assim. Só depois conheci a "poesia toda", dois volumes em que juntou "todos os poemas tidos pessoalmente como aproveitáveis, que o autor escreveu entre 1953 e 1971". Com essa vírgula, sim, que as vírgulas e os acentos têm um lugar próprio na gramática e na ortografia dele. "Esta edição pretende-se completa e definitiva." Definitivo, em 1973. Vinte e três anos depois,voltou a publicar uma nova "poesia toda", volume único, denso, pesado, pensado, definitivo.
Não sei escrever sobre Herberto Helder, como não sei escrever sobre poesia. É coisa que se lê sempre com olhos diferentes, conforme a luz, a temperatura, a companhia, a alegria, a tristeza, se o dia está a ir depressa, se a noite tem lugares vazios. Nem sei sequer chamar-lhe Herberto, intimidade de que nunca me aproximei. Momento altíssimo da minha vida, sentei-me em frente dele uma vez num café banal de Lisboa, calada enquanto ele conversava animado com o editor Michel Chandeigne sobre a tradução em francês do Poema Contínuo. "Vens falar-me da morte de um amigo?", perguntou ontem Michel quando me atendeu o telefone. E depois, devagar: "Estou feliz por tê-lo conhecido, estou triste por tê-lo perdido. Tenho uma recordação doce das conversas com ele."
O que sei de Herberto Helder são as leituras, os silêncios, as distâncias. Os meus primeiros passos em volta tinham uma capa branca, azul e laranja, uma ilustração aos quadradinhos com design de José Brandão, edições Estampa, 1970. E se falo nisso é porque aquela capa também nos oferecia a identificação com o que era novo. Sempre esquivo, pertencia só a ele próprio e a um pequeno número de familiares e amigos. E aos livros. "- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa."