Um 'Hamlet' estranhamente silencioso

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Um 'Hamlet' estranhamente silencioso

Rigorosa mas asséptica, a encenação de João Mota não convence

A história de um homem que mata o irmão para lhe roubar trono e mulher e que é perseguido pelo enteado, alertado pelo fantasma do pai, bastaria para alimentar qualquer enredo. Mas como a revelação do duplo crime é, em Hamlet (c. 1600), precoce, a peça constrói-se como uma vertiginosa rede de dissimulações, através das quais as personagens tentam escapar à trágica ratoeira da verdade e da morte.

No ano em que celebra 50 anos de vida teatral, João Mota - fundador e director da Comuna/Teatro de Pesquisa (grupo que, também este ano, celebra um redondo 35.º aniversário) - uniu esforços com o Teatro Municipal Maria Matos para fazer o seu segundo Shakespeare (dirigira Medida por Medida, em 1997).

O seu Hamlet é tributário da visão teatral de Peter Brook, de quem foi discípulo nos anos 70. A memória do mestre condiciona inegavelmente o espaço vazio onde tudo se passa e em torno do qual se dispõem três bancadas (reconstituição, sobre o palco e a plateia do Maria Matos, da pronunciada verticalidade que distingue a sala principal da sede da companhia, na Praça de Espanha).

Insinua-se, ainda, na esmerada elocução - em parte sustentada pela clareza dramatúrgica da versão que João Maria André fez a partir do Hamlet traduzido por Sophia Mello Breyner -, num invulgar comedimento gestual, na iluminação toldada, na intemporalidade vagamente orientalista dos figurinos, nos despojados pés nus que todos os actores ostentam, na representação estilizadamente hindu que a trupe de comediantes faz diante da corte de Elsinore.

Este obstinado rigor produz, contudo, um efeito paradoxal. Por um lado, potencia caracterizações fidedignas e desempenhos atentos. O incisivo Hamlet de Diogo Infante articula-se bem com a brandura generosa do seu amigo Horácio (Albano Jerónimo), com a secura do par culpado (Carlos Paulo e Natália Luiza), com a patetice grandiloquente de Polónio (João Ricardo), faltando-lhe apenas uma Ofélia consistente (Ana Lúcia Palminha).

Por outro lado, empalidece as contrastantes ambiguidades éticas de Hamlet, que apenas se sinalizam nas imagens da máscara/caveira (envergadas no início e no final da récita) e dos espelhos (limpos, os dos camarins donde os actores partem e a que regressam; sombreados e difusos, os que dominam o fundo cénico).

Falta a esta encenação, pois, aquele grão artesanal e avassalador, porque humano, que faz do acto teatral - como profetiza Hamlet - "a hora em que se embruxa a noite, / Quando de par em par se abrem as campas e o próprio inferno exala seu hálito e contagia o mundo".

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