Um "campo de refugiados" à hora de jantar
À medida que a luz desce, a praceta e o jardim enchem-se de gente, a passo lento. A fila cresce com a noite, até chegar a distribuição de comida. A dimensão do quadro depende dos dias. O retrato varia pouco e está tirado de fresco.
Há cinco anos, quando começou a explorar um café junto à praceta, Gonçalo Sá via "menos gente a pedir", e "gente com outro aspeto". Os outros, os de há três, quatro anos, "via-se que eram pedintes". Estes, os das filas de hoje, são "outra gente, gente mais nova, pais com crianças, famílias, e até idosos".
É isso que vê também quem assiste, da janela de casa, às rotinas que se instalaram no adro: "São novos pobres, famílias com crianças, muitos imigrantes, e idosos", diz à Lusa uma moradora que vive aqui desde 2008.
Há um ano, conta, a fila de hoje tinha apenas homens "sem-abrigo, arrumadores, alcoólicos", e quase se escondia no jardim. Hoje, o que vê todas as noites, à hora de jantar, parece-lhe "um campo de refugiados". Há "crianças a brincar à apanhada enquanto esperam pela sua vez de comer uma sandes e uma sopa".
Para João Veríssimo, que vive aqui "desde sempre, desde 1978", este grupo, "para além de muito heterogéneo, é perigoso para si mesmo".
"A evolução tem sido exponencial. Já cheguei a fotografar perto de 200 pessoas", conta. A fila "é um lugar assustador". Sucedem-se os "episódios de violência", e há mesmo "situações em que alguns sem-abrigo vêm receber comida para a venderem a outros".
Ele defende que devia "estudar-se este grupo" e "criar-se uma infraestrutura para resolver o problema da distribuição, por parte de várias associações, de comida na rua". Para João Veríssimo, "esta é uma questão de segurança, mas também de dignidade para quem pede".
"Estamos preocupados. Isto parece um campo de refugiados. E só pode querer dizer que as pessoas deixaram de ser uma prioridade", concluiu.
Para este morador, como para a sua vizinha Sofia Lacerda, de 39 anos, a viver há 14 com vista para a praceta, o quadro de todas as noites "ocupa um espaço que costumava ser de todos, degrada o bairro e deixa os moradores pouco à vontade".
"Qual é a regra que diz que a comida deve ser distribuída na rua? As pessoas esperam na fila, esteja sol ou chuva. É preciso encontrar-lhes outro local", acrescentou, queixando-se ainda de que, "depois da distribuição, fica sempre lixo na praceta e no jardim".
O presidente da Junta de Freguesia de São Jorge de Arroios, João Taveira (PSD), diz que conhece o caso, e concede à preocupação dos moradores e às suas queixas "toda a razão". O autarca confirma o cenário -- "gravíssimo" -- e garante que esta situação também não o deixa descansado.
"É evidente que esta procura traduz um aumento das necessidades, mas eu sou frontalmente contra a distribuição de comida. É uma forma indigna e inumana de se ajudar as pessoas. A caridade é um penso, não resolve os problemas de ninguém", disse à Lusa.
Para tentar dar resposta ao problema, João Taveira espera inaugurar, em julho deste ano, uma cantina social na freguesia. A ideia é "passar da caridade à reinserção social e profissional dos beneficiários do serviço", juntando às refeições gratuitas para os carenciados uma vertente de formação profissional, integrada no funcionamento do projeto, para que os beneficiários possam ter mais ferramentas para se reintegrarem no mercado de trabalho e melhorarem a sua vida".