Ultraliberal Milei obrigado a negociar agenda com Congresso hostil

Entre o sonho da eleição e a realidade da política, o eleito, com cerca de 90 deputados aliados num universo de 227, terá de ser mais moderado do que se mostrou em campanha para garantir a governabilidade. E cumprir a promessa de fazer do país "uma potência mundial"
Publicado a
Atualizado a

O desafio de vencer as eleições, batendo forças políticas estabelecidas há décadas, foi só o primeiro trabalho hercúleo do libertário Javier Milei, presidente da Argentina eleito na madrugada de segunda-feira com 55,69% dos votos, mais 11 pontos do que o rival Sergio Massa. O segundo, o terceiro, o quarto e por aí adiante será contornar um Congresso maioritariamente hostil, driblar sindicatos, movimentos sociais, a igreja católica e até parte do empresariado para colocar em prática uma agenda neoliberal jamais vista no país - e talvez no mundo.

"Muito obrigado a todos os cidadãos de bem pelo milagre de eleger um presidente libertário, hoje começa o fim da decadência argentina, termina o modelo empobrecedor do estado omnipresente, que nos fez passar de maior potência do mundo a 130ª", disse Milei, no Libertador Hotel, em Buenos Aires, no discurso de vitória.

"A situação desta Argentina é crítica, não há lugar para tibiezas, nem para meias tintas, não há lugar para o gradualismo, temos de ser drásticos nesta reconstrução", prometeu.

Porém, para reconstruir a Argentina, o novo inquilino da Casa Rosada terá de enfrentar um Congresso dominado pela coligação derrotada, a Unión Pela Pátria, cujo principal partido, o peronista, de centro-esquerda, tem visão praticamente oposta à sua. Dos 257 deputados, 107 são ligados a esse peronismo, de Massa, derrotado no domingo, de Alberto Fernández, presidente cessante, e de Cristina Kirchner, ainda a líder mais destacada desse campo.

A coligação Juntos Por El Cambio, liderada pelo Proposta Republicana, partido de centro-direita, de Maurício Macri, antecessor de Fernández na presidência, tem, entretanto, 94 parlamentares. Porém, estima-se que, apesar do acordo pré e pós eleitoral de Macri e Milei, apenas cerca de dois terços deles se aliem aos 39 deputados Libertários, o partido do novo presidente, em votações estratégicas.

Dessa forma, algumas das propostas radicais do eleito vão ser sujeitas, muito provavelmente, a longas e tensas negociações. E no Senado, a correlação de forças é ainda mais desfavorável para o ultraliberal.

A primeira negociação teve lugar já ontem: o encontro marcado para as 12h30 entre os presidentes eleito e cessante na Casa Rosada não se verificou porque os dois não conseguiram chegar a acordo sobre os pontos a serem tratados. A reunião ficou para data a assinalar.

A relação de Milei com sindicatos e movimentos sociais, por tradição influentes no país, não será, naturalmente, fácil. Mas, com setores religiosos, sobretudo depois dos ataques do candidato ao Papa Francisco, também não. Mesmo entre empresários, as ideias liberais do novo presidente vêm provocando interesse mas também receio.

Milei tem, no entanto, a seu favor a legitimidade da vitória, muito acima do esperado, do último domingo: além dos 11 pontos de avanço sobre Massa, somou três milhões de votos a mais e impôs-se em 21 dos 24 distritos do país.

Dessa forma diz que vai impor as suas ideias, baseadas "num estado limitado, na propriedade privada e no comércio livre, quem quiser vir, não importa de onde vieram, está convidado a fazer connosco uma potência". "A Argentina tem futuro mas esse futuro é liberal", garantiu.

À porta do Libertador Hotel, onde no "dia zero" da sua presidência, Milei se dividiu em reuniões com eventuais novos ministros, os amigos Santiago e Daniel referiam-se precisamente, "às castas" [elites políticas] que o novo presidente tem de enfrentar. "Ele meteu muito medo às castas mas as castas vão estar aí, no entanto, nada poderão fazer, ele ganhou, tem o povo do lado, disposto a ajudar a fazê-lo implantar a política que deseja", disse Santiago, estagiário num banco.

"Nem acredito que estamos a viver isto, um liberal na Argentina, depois de tantos anos de crises e roubos, agora só o queria ver e saudá-lo", acrescentou Daniel. porém, nem ele, nem Santiago, nem sequer os jornalistas viram o presidente eleito ao longo de toda a manhã.

As reações internacionais ao triunfo do libertário chegaram de todos os lados, mesmo de países, como Brasil e China, com os quais Milei disse não pretender ter relações. "A democracia é a voz do povo e ela deve ser sempre respeitada", disse Lula da Silva, presidente brasileiro, principal patrocinador da entrada da Argentina no bloco de emergentes, BRICS, e apoiante declarado de Massa.

"Os meus parabéns às instituições argentinas pela condução do processo eleitoral e ao povo argentino que participou da jornada eleitoral de forma ordeira e pacífica. Desejo boa sorte e êxito ao novo governo. A Argentina é um grande país e merece todo o nosso respeito. O Brasil sempre estará à disposição para trabalhar junto com nossos irmãos argentinos", prosseguiu.

Mao Ning, a porta voz do ministério chinês de Relações Exteriores, disse que a China quer "trabalhar com a Argentina e prosseguir a amizade entre os países com uma cooperação em que todos ganham". "A China sempre deu muita importância ao desenvolvimento das relações entre os países, numa perspectiva estratégica e de longo prazo".

Na Rússia, Dmitry Peskov, porta voz do Kremlin, enviou recados para Buenos Aires. "Desejamos que se esclareçam numerosas questões a respeito dos nossos vínculos bilaterais, tomamos nota de uma série de declarações que o senhor Milei fez durante a campanha eleitoral mas só nos centraremos e julgaremos o presidente eleito pelas declarações efetuadas após a posse".

Na campanha, o candidato vencedor sublinhou que não falaria com comunistas, uma vez eleito, e colocou-se ao lado dos Estados Unidos no apoio à Ucrânia, em guerra com a Rússia.

Peskov acrescentou que a Rússia acolherá com "respeito a eleição do povo da Argentina" e demonstrou apoio ao "desenvolvimento das relações entre os países".

Jack Sullivan, assessor para a Segurança Nacional da Casa Branca, felicitou "Milei e o povo da Argentina por celebrar eleições livres e justas". "Esperamos construir sólida relação baseada no nosso compromisso pelos direitos humanos, valores democráticos e transparência".

Nos mercados, as ações de empresas argentinas cotadas na Bolsa de Nova Iorque dispararam após o triunfo de Milei. Os Exchange Trade Funds subiram 13% em pré-mercado dos Estados Unidos, apesar de incertezas sobre planos do novo governo.

No mercado de câmbio, mesmo com o feriado de ontem, da Soberania Nacional, as reações também foram positivas: de acordo com o jornal Clarín, o dólar blue (não oficial), o que melhor representa a relação entre oferta e a procura, recuou 2% face ao peso, para perto de 950 pesos.

1 - Implodir o Banco Central

O fecho do Banco Central é, para Milei, "uma obrigação moral" que, no entanto, exigirá a dolarização da economia.

2 - Dolarizar a economia

Milei defende que a única forma de acabar com a inflação é gerar um choque com salários em dólares.

3 - Privatizar o privatizável

"Tudo o que possa estar nas mãos do setor privado, estará nas mãos do setor privado", prometeu Milei. Rádio, TV, agência de notícias e petrolífera públicas serão privatizadas.

4 - Romper relações com Brasil e China

Em campanha, Milei disse não pretender dialogar com presidiários, referindo-se a Lula, presidente do Brasil, nem fazer negócios com comunistas, referindo-se à China. Brasil e China são responsáveis por dois terços do comércio exterior argentino.

5 - Abandonar Mercosul e BRICS

Em agosto, Milei afirmou ser necessário "eliminar" o Mercosul, bloco comercial de países sul-americanos, por "prejudicar os argentinos de bem". O candidato prometeu ainda retirar a argentina dos BRICS, grupo de emergentes do qual o país é membro desde este ano.

6 - Reduzir número de ministérios

O novo presidente quer um executivo com oito ministros, um deles, o de Capital Humano, incluirá Educação, Saúde, Desenvolvimento Social e Trabalho.

7 - Flexibilizar venda de armas

Milei quer flexibilizar a venda de armas e dar às Forças Armadas tarefas de segurança interior, o que lhes está, por ora, vedado.

8 - Cortar subsídios da Saúde

Na Saúde, Milei prometeu deixar de subsidiar a oferta, os hospitais, e passar a financiar a procura, os doentes.

9 - Proibir aborto e regular comercialização de órgãos

Milei quer "proteger a criança desde a conceção" e por isso proibir o aborto, legal desde 2020. "Se a venda de órgãos estivesse livre ao mercado, os transplantes funcionariam muito melhor", defendeu também.

10 - Fechar museu da memória dos crimes militares

Victoria Villarruel, eleita vice, quer fechar o Museu da Memória, situado no centro de detenção e extermínio na ditadura, e transformá-lo em escola militar.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt