UE avisa Turquia após apreensão de jornal crítico de Erdogan
Um dia depois de o tribunal ter decidido que o Zaman, o maior jornal da Turquia, passaria a ter um administrador público, a edição de ontem do diário (preparada antes de o Estado assumir o seu controlo) fazia manchete com as palavras "A Constituição está suspensa". Um último desafio a Recep Tayyip Erdogan da publicação ligada ao clérigo Fettullah Gülen, que vive nos EUA e que o presidente acusa de tentativa de golpe de Estado.
Ontem, a polícia disparou gás lacrimogéneo e balas de borracha contra manifestantes que gritavam "A imprensa livre não pode ser silenciada" diante das instalações do jornal, em Istambul. A dois dias de uma cimeira União Europeia-Turquia para discutir a guerra na Síria e a crise dos refugiados, Bruxelas apressou-se a condenar a atitude do governo de Ancara. "Como candidato [à adesão à UE] a Turquia tem de respeitar e promover valores democráticos, incluindo a liberdade de imprensa", afirmou a chefe da diplomacia europeia, Federica Mogherini. Em comunicado, a italiana lembrou que "uns media livres, diversos e independentes constituem uma das bases para uma sociedade democrática ao facilitar o fluxo de informação e ideias e ao garantir transparência e responsabilidade".
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O comissário europeu do Alargamento, Johannes Hahn, também se mostrou preocupado, sublinhando que "os últimos acontecimentos no Zaman põem em causa progressos feitos pela Turquia noutras áreas".
O presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, reagiu no Twitter, criticando "mais um revés à liberdade de imprensa". E prometeu abordar o assunto amanhã com o primeiro-ministro turco Ahmet Davutoglu, no encontro que têm marcado antes da cimeira em Bruxelas. A União Europeia tem sido acusada por alguns setores de estar a ignorar as violações dos direitos humanos na Turquia em troca de ajuda de Ancara tanto na guerra contra o Estado Islâmico na Síria como na gestão dos migrantes que continuam a tentar chegar aos milhares à Europa - dois milhões vivem nos campos de refugiados turcos.
A Rússia defendeu a abertura de um inquérito internacional para apurar o que aconteceu no Zaman, sublinhando esperar que "os nossos parceiros europeus saibam afastar os receios de desagradar a Ancara. E os Estados Unidos lamentaram "a última de uma série de ações judiciais e policiais preocupantes ordenadas pelo governo da Turquia.
O grupo Zaman, além do diário com o mesmo nome e com uma circulação de 650 mil exemplares, detém ainda uma edição em inglês, o Today"s Zaman, e a agência de notícias Cihan, cujo site foi ontem bloqueado pelas autoridades. Esta organização mediática é considerada próxima do imã Gülen, antigo aliado de Erdogan que se tornou o seu inimigo público número um desde o escândalo de corrupção que em finais de 2013 atingiu várias figuras proeminentes do Estado turco.
O Serviço
Desde o escândalo, as autoridades turcas multiplicaram as perseguições aos membros do movimento Hizmet (ou O Serviço, em turco), de Gülen, afastados dos cargos que até aí ocupavam na polícia ou na justiça. Erdogan acusa o clérigo de 74 anos, a viver num exílio autoimposto desde 1999 nos Estados Unidos, de estar nas origens das acusações de corrupção de que foi alvo há dois anos. O presidente garante que o Hizmet criou uma espécie de "Estado paralelo" com o objetivo de o derrubar. Uma suspeita que os gulenistas garantem ser mentira.
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No 149.º lugar dos 180 países do ranking de liberdade de imprensa dos Repórteres sem Fronteiras, a Turquia tem estado na mira da oposição, das ONG e de vários países que têm denunciado as pressões do governo de Ancara sobre os jornalistas. Antes de tomar o controlo do Zaman, a justiça turca decretara a detenção de dois jornalistas do diário da oposição Cumhuriet. Can Dündar e Erdem Gül vão a tribunal em abril, acusados inicialmente de espionagem por revelarem fotos e um vídeo que alegadamente provaria que o governo turco entrega armas a rebeldes islamitas na Síria. Agora respondem também por "apoio a grupo terrorista" e tentativa de golpe". Se forem considerados culpados, arriscam prisão perpétua.
Depois de a polícia ter invadido a sede do Zaman na sexta-feira à noite, ontem alguns dos jornalistas conseguiram entrar no edifício. Segundo a BBC, alguns deles tuitaram não ter acesso aos servidores do jornal e não conseguirem colocar os seus artigos online. O acesso aos e-mails também terá sido cortado e o diretor do jornal, Abdulhamit Bilici, foi demitido pelos administradores nomeados pelo Estado.