Ucrânia – o sangue da verdade e a lusofonia

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As posições do chanceler alemão Olaf Scholz são uma viragem na política externa e na coesão da UE, mas é útil ter presente que com a implosão da URSS o conceito de democracia foi universalizado na base de "um homem, um voto", sem atender à realidade étnica e cultural de cada pais, o que conduziu a guerras, como na ex-Jugoslávia.

Mandela entendeu-o como ninguém, introduzindo mecanismos para que o primeiro governo de maioria na África do Sul conduzisse a que o vice-presidente da República a eleger fosse do segundo partido mais votado e que os partidos concorrentes com mais de 5% de votos integrassem o governo.

Como previu, De Klerk acabou vice-presidente e o partido INKATA teve mais de 5% e o zulu Buthelezi foi nomeado ministro do Interior.

No novo quadro global criou-se a Organização Mundial de Comércio, com a hegemonia dos mercados a que o Papa Francisco apelidou de capitalismo selvagem e a deslocalização de empresas para mercados com baixos salários, é exemplo de como a UE não soube agir, pelo que, com a pandemia, sentiu-se desarmada inclusive na produção de bens simples, como máscaras de proteção.

A intenção passou a ser a reindustrialização, resultando dela que os ideários dos partidos fundadores da UE, democratas-cristãos e socialistas, acompanharam a "moda" e secundarizaram-se, pelo que o pragmatismo tornou-se invasor da estratégia.

Duas notas: o ex-chanceler socialista Gerhard Schroeder passou a dirigente da empresa russa Gazprom e Merkel, democrata-cristã, ao impulsionar o gasoduto Nord Stream 2, reforçou as tergiversações da UE, obnubilando objetivos e fazendo-lhe diminuir a influência política que lhe era exigível.
Com a invasão à Ucrânia a UE respondeu solidariamente integrando refugiados, consciente do aumento generalizado dos preços que aí virão.
Se a UE reforçar a defesa, equipando-se para a guerra, forma de a dissuadir, reganhando autonomia na energia e aparecer como grande player, evidenciará a superioridade das democracias e à escala planetária servirá de exemplo.
Quando Portugal em 1986 aderiu à UE, surgiu como parceiro privilegiado para as relações com países ACP, indicou um comissário para essas relações, promoveu a paz para Angola, mais tarde a primeira cimeira UE-África e soltou um grito por Timor-Leste com eco mundial.

Instituições públicas e da sociedade civil foram criadas para o aprofundamento daquelas relações, mas a perda da dinâmica, de há anos a esta parte, é mesmo assunto a ponderar agora seriamente.
A experiência conduz-nos ao reconhecimento dessa perda e da sensibilização para as questões da lusofonia, a que não é alheia a alienação ou a concessão de quase todas as empresas estratégicas sob domínio de capital nacional.

Para além de o país ter hoje 8% da banca nacional dos mais de 95% que tinha há escassos anos, as respostas que o país terá de dar numa lógica de coesão e crescimento implicam uma planificação estratégica com eficácia da administração, cuidando-se das funções soberanas do Estado, da Justiça, alicerce da democracia até à defesa, com a consciência da marca identitária do país.

Desarmados de empresas estratégicas, para além das respostas que serão de monta no plano interno, há que reforçar a afirmação de Portugal no mundo para além da UE, sendo a lusofonia um instrumento a requerer políticas que vão ao encontro dos interesses dos países lusófonos, que conduzam os cidadãos a reganharem a consciência de uma pertença comum, não descurando a relevância dos interesses das relações ibero-americanas.

Devem priorizar-se, entre outras respostas em entreajuda, as que tenham foco nas potencialidades do mar, fronteira de todos, na cultura, com esta nas indústrias criativas, não negligenciando o decréscimo da demografia e a autossustentabilidade alimentar com dinamização do setor primário.

A conceção universal e tolerante da unidade dos povos da língua comum, reforçará a afirmação de todos, sendo este facto importantíssimo para a própria UE nas relações externas.

A nota final é de repúdio pela invasão à Ucrânia, país soberano e de solidariedade ao povo ucraniano e aos russos que se insurgem contra a guerra, tanto mais que a frase de um escritor norte-americano "só quando vi e senti o sangue percebi que era verdade" deve-nos fazer refletir sobre as razões pelas quais o Ocidente só percebeu a gravidade da situação quando visionou o sangue por ter feito prevalecer uma navegação à bolina e não estratégica.

No que a Portugal respeita e porque a lusofonia é instrumento de afirmação externa, complementar da integração na UE, não há senão que reforçá-la cada vez mais.


Secretário-geral da UCCLA

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