Über alles

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Über. Na passada sexta-feira, Paris tornou-se um cenário de guerra. As estradas para os dois aeroportos internacionais foram bloqueadas. Carros ardiam nas ruas. Polícia de choque em ação, dezenas de detenções. Feridos graves. Três atentados terroristas entretanto matavam em simultâneo em três países, um deles na própria França. Sexta-feira sangrenta e dramática. A Grécia caía de joelhos aos pés dos credores.

Fanáticos e lunáticos. A fúria que incendiava a capital do país não era contra eles. O Estado Islâmico com crueldade a lembrar a complexidade dos dilemas europeus. Os seus ministros das Finanças nas contas sem parar. Mas milhares de franceses protestavam. Violentamente. Contra uma aplicação de smartphone. O Uber é o novo inimigo dos instalados, um perigo para os regulamentos, uma ameaça para quem tem licenças.

Metáfora da miopia coletiva - é o que o Uber verdadeiramente é. O ensaio sobre a cegueira que Saramago poderia ter escrito. A velha economia contra a nova. A velha economia que não tem idade. Simplesmente não concebe a inovação. Da mesma forma que a velha política não permite a ousadia dos que a desafiam.

A ira de taxistas, a revolta dos políticos locais, o bloqueio de juízes conservadores - o que os provoca, se o Uber faz exatamente o mesmo que um táxi. Traz e leva passageiros, mas faz de uma forma diferente, disruptiva. Sem frota própria. Nem motoristas contratados. Somente a intermediação entre passageiros e donos de automóveis. Estes "motoristas" são registados, submetem-se a um teste, é-lhes verificado o registo criminal e, depois de adquirirem carta de condução para exercer atividade remunerada, ficam habilitados a aceitar corridas.

Tudo funciona a partir do smartphone. O cliente abre a app e requisita um carro. Com a localização do GPS, o Uber aciona o motorista mais próximo, que também usa o software. Como as informações do passageiro já estão armazenadas, incluindo as do cartão de crédito, a cobrança é feita automaticamente: 80% do valor ficam com o motorista, os outros 20% com o Uber.

Há um motivo, fácil de explicar, na repulsa deste inofensivo "serviço virtual": o seu estrondoso sucesso. Em menos de cinco anos, chegou a 60 países e mais de 300 cidades em todo o mundo. Em Nova Iorque o número de carros Uber já ultrapassa o de táxis. Fundos de "capital de risco" investiram ali cerca de seis mil milhões de dólares e, por dia, um milhão de pessoas usam o serviço. Resultado, a empresa está avaliada em 41 mil milhões, um valor de mercado que supera a gigante Delta Airlines.

Há postos de trabalho destruídos. E 650 milhões de dólares, que a Uber transferiu para os motoristas parceiros angariados em todos os países em que opera, só no último trimestre do ano passado. Neste eterno confronto entre a instabilidade do progresso e o conforto dos acomodados, recordo uma conversa com um antigo presidente da TAP, que pressionava o governo para travar a entrada das companhias low cost nos aeroportos nacionais. Quinze anos depois, é possível responder: o que teria acontecido ao turismo nacional, a cidades como o Porto e aos milhares e milhares de empregos entretanto criadas, se a easyJet tivesse sido então combatida e a Ryanair declarada clandestina?!

Nunca Portugal tinha visto cidades tão vibrantes e empresários tão dinâmicos e empreendedores, porque antes também nunca havia sido liberalizada a atividade turística. Novos serviços eram mortos à nascença, porque o essencial era proteger a oferta instalada, em vez de responder às necessidades das pessoas. Chama-se a isto mercado, palavra que, por definição, ofende quem não quer concorrência.

Também conhecemos a história. Com sérias dificuldades para se instalar, sobretudo na Europa, já travada em tribunais belgas, franceses, alemães, holandeses, espanhóis e portugueses, a empresa apresentou uma reclamação à Comissão Europeia. Bruxelas prometeu um estudo para analisar a questão. Nem sabe onde se meteram. Para desregulamentar, lá vêm novos regulamentos...

Alles. Significa "tudo". E über é "acima". Mas über alles não pode ser traduzido à letra, porque não quer dizer "acima de tudo". A expressão correta em alemão é "mais que tudo o resto". Terá sido usada originalmente num poema de 1841 - "Ich liebe dich über alles auf der Welt" (Amo-te mais que tudo o resto no mundo"). E deliberadamente adulterada pela propaganda de guerra dos Aliados contra os nazis.

Hoje a diferença não é mais que uma nuance inconsequente. Mais que tudo o resto, a Alemanha está acima de tudo. E isso faz toda a diferença. Com consequências que se adivinham. O euro vai encolher. A Grécia vai sair de rastos. Com um referendo a fingir que é pelo próprio pé. Toda a gente vê. Toda a gente escreve. Toda a gente alerta. Toda a gente se assusta. Tanta gente que só pode ser premeditado.

Seria uma arrogância imaginar que todos os ministros são burros, que não há um chefe de governo sensível, que só eles não percebem, que são os únicos que não se alarmam. Obtusos somos nós, que há meses escrevemos e os julgamos obtusos. Acima de tudo há coerência: os ministros das Finanças reúnem primeiro, depois os primeiros-ministros aprovam. Os números andaram sempre à frente da estratégia.

A Europa do mercado único. A Europa de um sistema monetário. A Europa de um banco central. A Europa de uma moeda. Agora a Europa das dívidas. Sem dúvidas. Chamaram a isto um sonho. O ideal de Jean Monet. Até ganhou um Nobel. Da Paz. Paz à sua alma. Não sei como é que se diz isto em grego. Nem tenho neste teclado letras para escrever miséria. A miséria que já têm e a que lhes está por chegar. A Argentina sem vacas. Curralito. Encurralados. Nós, que ficamos. Eles, com a Turquia ao lado e o Estado Islâmico lá dentro.

Über alles. Vamos queimar pneus e incendiar carros. Afinal, os migrantes não pagam taxas nem cumprem regulamentos.

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