TV Marcelo ou fim de uma era

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Em Portugal usa-se o termo histórico por tudo e por nada, mas se há um momento histórico, neste caso na televisão portuguesa, esse momento terá lugar hoje, quando Marcelo Rebelo de Sousa se sentar pela última vez - e já não como comentador - no estúdio da TVI na anunciada festa do adeus.

O facto de despir uma farda e vestir outra - na verdade ambas nunca deixaram de coexistir - é também relevante porque Marcelo, sempre acusado de ser um tático sem coragem, mostrou uma notável visão estratégica e entra na corrida presidencial como queria entrar: largamente favorito para a eleição de janeiro.

Marcelo vai fazer falta. Desde logo à TVI, que perde um importante trunfo na batalha das audiências, mas sobretudo aos espectadores, qualquer que seja o espetro político onde estes se situem. Mesmo os críticos terão saudades. As noites de domingo nunca mais serão as mesmas.

O professor, e os portugueses adoram professores ainda mais do que doutores, descodificou ao longo destes longos anos não apenas a política mas o mundo em geral, falando com a mesma desconcertante simplicidade sobre o conflito israelo-palestiniano, a guerra no Iraque ou os berbicachos, um dos seus termos favoritos, na União Europeia. Escolheu, além do mais, temas transversais como o futebol ou a música, sempre apresentados numa linguagem universal e como tal inteligível por todos.

Não afastou com essa estratégia o público mais letrado que, sendo crítico do seu tom ligeiro e popular, nunca deixou de o seguir e de escutar com atenção a sua análise política, designadamente a que era feita nas entrelinhas. Neste domínio, tudo parecia natural e tudo era estudado.

Não foram poucas as vezes em que analisando ele próprio as audiências, se percebia bem que sabia a quem se dirigia. Um trabalho que muitos profissionais, só da televisão, ainda hoje não fazem.

Grande comunicador, de sorriso cúmplice, olhar vivo e gestos largos, tudo muito importante no meio, Marcelo estabeleceu empatia com os seus interlocutores que, sem exceção - sobretudo na TVI - nunca resistiram ao seu encanto genuíno e à sua personalidade cativante. Daí aos leitões em cima da mesa do jornal foi um passo. Também soube ser o ombro amigo que todos quisemos ser, por exemplo, na brutal tragédia que atingiu Judite Sousa. Tornou-se uma figura lá de casa, como acontecera na TV de outros tempos e que a fragmentação de hoje já não permite.

A saída de cena de Marcelo é o fim de uma era. Apesar da profusão de seguidores, não há um substituto com a mesma dimensão. Marques Mendes, que com ou sem intenção lhe decalcou o estilo, não tem a mesma empatia. Nem lá perto.

Superado o desafio da TV, onde mesmo fazendo política deixará saudades, Marcelo enfrenta agora o maior combate da sua longa vida pública. Contam os biógrafos que sonhou em pequeno ser primeiro-ministro. Vai, afinal, correr para Belém. No palácio cor de rosa precisa de ser ele mesmo, com todas as qualidades, mas com o fato de presidente que parece pesado na sua visão leve da vida que a televisão tão bem retratou.

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