Tudo o que você não sabe sobre o "combate do século"

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Ao boxe devo alguma coisa. Desde logo, nunca o ter praticado, e quem me conhece de perfil tem de reconhecer que foi uma decisão prudente. Devo ainda algumas recordações que não são menores para mim. Numa manhã de cacimbo de 1959, o meu pai e o boxeur Taúta discutiam o combate pelo título mundial de pesados, o americano Floyd Patterson e o sueco Ingemar Johansson, em Nova Iorque, nessa noite. Claro, eles não o veriam, Luanda nem televisão tinha, e só o jornal da tarde do dia seguinte daria o resultado. O meu pai pediu um prognóstico e o amigo não hesitou: "O Floyd." Um europeu não tinha o título há 25 anos e o americano subiria ao ringue com o cinturão de campeão. Eu tinha 11 anos, estávamos numa pastelaria, com a palhinha eu sorvia uma lata de chocolate de CC Mel e a conversa ficou-me para toda a vida. Na verdade, o que não se conversou. Daquele combate, entre um negro e um branco, o meu pai e o amigo do meu pai falaram como um combate entre dois homens, e só.

Esse combate ganhou-o o sueco. No YouTube, gosto mais de ver o combate do ano seguinte, quando Floyd Patterson, ao quinto assalto, fez o punho esquerdo voar em círculo e atingiu o queixo de Johansson. Dizem que foi o mais perfeito KO da história. O sueco recebeu o golpe com delicadeza e sem surpresa, deitou-se com os braços em cruz. Aos dois segundos da contagem do árbitro, Floyd já estava com as luvas erguidas de campeão, aos dez, estava ajoelhado, a inquietar-se com o adversário. Os calções do branco eram brancos, os calções do negro eram negros e conto isto sabendo que não tem o menor interesse.

Muitos anos depois li uma reportagem do meu jornalista preferido, Gay Talese. Ele publicou-a na revista Esquire, em 1964 (só a li 40 anos depois), e chamava-se: "O Perdedor", a mais honesta história de desporto jamais escrita. Talese foi encontrar Patterson outra vez vencido. Sonny Liston, mais 12 quilos e bandido com passado nas prisões, arrebatara-lhe o título. Floyd Patterson nunca iria recuperá-lo. Ele que fora o mais jovem campeão mundial, era considerado, com o presidente Eisenhower e o cantor Elvis Presley, a cara mais icónica da década de 1950 americana. Mas sabia que nem isso lhe permitia entrar num restaurante de camionistas em Baltimore e encomendar um almoço. Ele queria continuar a combater, para fazer pela vida e também para impor aquela pequena exigência que punha nos contratos: à volta do quadrado de lona em que saltitava e disparava uppercuts, não haveria uma só cadeira segregada, só para cus pretos ou brancos.

Em 1964, Gay Talese foi encontrá--lo numa granja do estado de Nova Iorque, treinando-se num hangar, entre molhos de feno. Ele vivia envergonhado pelas tareias que Liston lhe havia dado. O trabalho dele era atirar o outro ao tapete, mesmo que depois se ajoelhasse, inquieto. "Não se deve olhar os olhos a outro boxeur. (...) Uma vez olhei o meu adversário e vi que ele tinha uma cara simpática, olhou-me, sorriu-me e sorri-lhe. Foi esquisito, muito esquisito. Quando um tipo olha outro e sorri-lhe, não faz sentido dar murros." Foi buscar o filho à escola e um homem pequenito permitiu-se gozá-lo: "Desculpe, não é o Sonny Liston?" Ele limitou-se a dizer que não era. Poderia já não ser campeão, mas a ser seria sempre um campeão suave.

Em 1972, aos 37 anos, Floyd Patterson teve a última oportunidade ao defrontar Muhammad Ali, que regressava aos ringues. Ali despachou-o e foi o último combate de Patterson. Para Muhammad Ali foi só mais um patamar para voltar a campeão. Estava marcado para outubro de 1974 "O Rufar do Tambor na Selva", como chamaram os americanos ao duelo em Kinshasa - Ali contra o campeão George Foreman. Um querido e velho amigo partiu com um grupo, de Cabinda para o Zaire, ver o histórico combate. Contou-me isso, um dia. E eu, excitado: "É verdade que o Muhammad Ali passou os assaltos a levar pancada, a cansar o outro? E quando o Foreman, exausto, baixou a guarda, deu--lhe o murro único e final?", perguntei-lhe. E ele, que adivinhara que estava a deixar África: "Não sei, preferi passear a pé por Kinshasa, sabia que não voltava lá."

Dizem-me que no "Combate do Século" (ou "Batalha pela Grandeza"), nesta noite, Mayweather contra Pacquiao, só para ter a sua marca no centro do tapete do MGM Grand Garden Arena, em Las Vegas, a cerveja mexicana Tecate pagou cinco milhões de dólares. Parece--me tão pouco. Será que Pacquiao não tem um só estado de alma? Nem Mayweather uma namorada receosa?

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