Trumpbart
Steve Bannon não foi o criador de Donald Trump enquanto personagem política, mas está a moldar o perfil da sua administração de forma imparável. Para alguns, Bannon está para Trump como Karl Rove esteve para George W. Bush: funcionam como grandes manipuladores, criadores de factos, narrativas agressivas, sem nunca serem chamados à responsabilidade política por falta de crivo prévio de outras instituições às suas nomeações. Mas há diferenças. O primeiro ponto que os distingue é a origem. Karl Rove trabalhou e dirigiu campanhas para o Congresso e para a Casa Branca desde o início da década de 1970, seja no seu estado natal, o Texas, ou com vários candidatos republicanos, como Reagan, Bush pai e George W. Bush. É, portanto, um veterano estratega político com provas dadas e o consequente poder junto de quem ajudou a eleger, na senda de outros nomes importantes da consultoria política americana, como Mark Penn, Jim Messina, David Axelrod, John Weaver ou David Plouffe.
Podemos e devemos discutir o peso que posteriormente assumem estes homens na definição das políticas públicas da Casa Branca, mas acrescentar Steve Bannon ao grupo é um disparate. Rove teve de facto um poder desmesurado na administração Bush, mas o presidente nunca permitiu, por exemplo, que integrasse as reuniões decisivas do seu conselho de segurança nacional. Ao invés, o presidente Trump tratou imediatamente de alterar a regra, nomeando Bannon para esse grupo restrito e retirando da mesa o representante do Estado-Maior, numa clara afronta à hierarquia militar, cedendo assim ao poder que Bannon conquistou sem que nada no seu currículo o recomendasse.
Mais uma vez, ao contrário de Rove, Bannon nunca fez vida na consultoria política nem nunca trabalhou em campanhas estaduais ou federais até dirigir a de Trump, mesmo assim sucedendo a Corey Lewandowski e Paul Manafort. A verdade é qua a sua entrada em agosto de 2016 foi absolutamente decisiva, numa altura em que as primárias já tinham terminado e era preciso passar para o patamar seguinte. A linha defendida foi a que se conhece: brutal, presencial, chocante, sem limites, sem nível, propositadamente ambígua, catastrofista, nacionalista, aproveitando todos os apoios que direta ou indiretamente formataram os momentos decisivos da campanha, desde o ataque cibernético ao Partido Democrata, à tomada de posição do diretor do FBI, à russificação da campanha, à misoginia e ao racismo. Esta receita brusca e caótica elegeu um presidente e Bannon foi o seu principal obreiro. Como o próprio descreveu nesse verão à Vanity Fair, "Trump é apenas um instrumento para nós". É precisamente este "nós" que faz a diferença.
O percurso de Bannon passou pela banca de investimento e pela produção cinematográfica até se cruzar com Andrew Breitbart, fundador do Breitbart News, um site suficientemente disruptivo no preenchido panorama dos media nacionais para merecer a adesão do eleitorado conservador. Daí até ser seguido por políticos republicanos foi um passo. Bannon toma conta do site após a morte súbita de Breitbart e endurece a sua natureza, aproximando-o da pureza identitária, da xenofobia, identificando demónios e conspirações por todo o lado, centrados sobretudo no multiculturalismo e no igualitarismo, numa defesa acérrima do populismo moralista antissistémico e liberal, seja contra os dois grandes partidos ou contra a imprensa de grande tiragem. Não espanta a linha ideológica que hoje emana da Casa Branca e a centralidade assumida por Bannon, especialmente tendo em conta que Donald Trump já foi tudo e mais alguma coisa na vida, inclusive membro e financiador do Partido Democrata e um progressista nas questões mais sensíveis aos olhos dos conservadores. A dupla merece-se: se Trump assegura o poder, Bannon não rejeita moldá-lo.
Uma das inspirações de Steve Bannon chama-se Julius Evola, um filósofo italiano do século XX, muito apreciado por gente do calibre dos senhores Mussolini e Himmler, cujas teses misturavam um racismo totalitário com um esoterismo paranoico, condimentando uma linha política à mercê das mais pérfidas almas políticas. Nesta era dos "factos alternativos" que alimentam a vitimização de uma "América escondida e sem voz", perigosos espertalhões como Steve Bannon são como as metástases de uma doença intravável, potencialmente incurável. Uma vez tomando conta do corpo não o largam mais, manipulam todos os membros, envenenam-nos por dentro até os corroerem sem piedade. Karl Rove ao pé de Steve Bannon é um menino de coro.
Foi nesta era dos "factos alternativos" e da "pós-verdade" que cheguei há dias a Roma para uma série de reuniões com gente da política, jornalismo, estratégia e finanças. O momento coincidiu com o regresso mais do que anunciado de Matteo Renzi à luta pelo Partido Democrático e revelou duas dimensões presentes em todas as conversas: uma gestão política danosa sobre o deficiente setor financeiro pode acelerar a chegada ao poder dos grillistas do Movimento 5 Estrelas, os mais próximos em Itália (juntamente com a Liga Norte) daquilo que Bannon tem andado a promover na América e uma das grandes apostas do homem de mão do senhor Putin para o sucesso da articulação partidária fascizante no Ocidente, Aleksandr Dugin, também ele um seguidor das profecias de Julius Evola. E o sucesso é renacionalizar Itália a par da França, desmembrando assim de vez a União Europeia, passando a Rússia a manobrar individualmente cada Estado na Europa.
Se pensarmos que o que se passa em Moscovo fica em Moscovo, ou que o se passa em Washington fica limitado à Sala Oval, corremos o risco de acordar tarde para a dimensão do problema. Nisto não há pós-verdade alguma: a internacional nacionalista está viva e bem viva. Travemo-la enquanto é tempo.
*Investigador universitário