Trump e Marcelo vistos de Maquiavel 

Nunca confiar no amor dos súbditos era o lema do clássico italiano. Como ver o afeto na política à luz deste ensinamento?
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Melhor ser temido que amado. Como encarar a célebre frase de Maquiavel no seu O Príncipe, reiterada numa outra - "Se se confia e se depende do amor, está-se perdido" - no contexto das democracias contemporâneas?

Num momento em que, como é característico dos populismos, se assiste ao triunfo de formas de fazer política que se baseiam sobretudo no explorar e intensificar de sentimentos, ignorando os factos e até a necessidade de um discurso minimamente lógico e estruturado, em que o presidente do mais poderoso país do mundo governa por Twitter, apelando àqueles que considera a sua base de apoio e que afirmam que, seja o que for que ele faça, o "adoram" - aliás, em campanha, o agora ocupante da Casa Branca chegou a dizer que poderia dar um tiro em alguém em plena 5ª Avenida (de Nova Iorque) e as pessoas, as suas, continuariam a apoiá-lo -, poderemos decretar que os afetos reinam, maquiavelicamente, ou seja, tática e perversamente, na política?

Patrício Costa, 42 anos, matemático de formação inicial que se doutorou em Ciência Política e é docente na Escola de Medicina da Universidade do Minho e na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto , crê que, "cada vez mais, as nossas decisões de voto se baseiam na importância do líder e menos na dos partidos, assistindo-se a um fenómeno de crescente personalização da política." Tendo realizado um estudo sobre a componente afetiva nas legislativas de 2009 desenvolveu recentemente, com o colega Frederico Silva, um trabalho sobre a componente "warmth", algo que traduz como o óbvio "calor" mas também como capacidade empática. "Chegámos até agora à conclusão de que é um fenómeno que pesa tanto no voto da esquerda, como da direita e da abstenção. E que as pessoas que não tinham votado na eleição anterior tinham mais hipótese de votar num líder que consideravam empático." Acresce que "a nossa formação da imagem de um líder ou de um partido é unidimensional - se gosto dele terei dificuldade em dizer que não é competente." A inversa será também verdadeira - o que permite pensar que quanto mais exaltadas forem as paixões pelos líderes maior dificuldade existirá nas escolhas "racionais", mais se aprofundarão as barricadas.

Como encarar, então, o fazer da exibição pública do afeto um elemento fundamental do exercício de um cargo, como sucede com Marcelo Rebelo de Sousa, distribuir abraços, beijos e proximidade, deitar-se ao lado dos sem abrigo, dançar com as crianças nas visitas de Estado? "Este grau de afetividade ou é muito genuíno ou é muito difícil de manter ao longo do tempo", comenta Patrício Costa. Porém, contrapõe: "Mas não foi sempre assim, ou quase sempre assim? As recomendações para alguém que faz campanha é sempre tornarem-se próximos, mostrarem-se simpáticos. E todos nós gostamos disso." Reflete. "O que pode acontecer? Pode trazer desgaste, porque é preciso controlar a exposição."

Poderá ainda operar um efeito de contaminação, em que todos os políticos sejam julgados em função da sua capacidade de afetar afeto, do seu efeito afetivo. E pode deixar de resultar - porque as pessoas deixam de gostar do que gostavam, se cansam, se enjoam. Vimos isso em Portugal várias vezes - da devoção a Cavaco enquanto PM à aversão subsequente e à aceitação sem entusiasmo do seu regresso e nova queda em desgraça, do amor do "povo" por Soares presidente de dois mandatos à forma como o rejeitou quanto quis regressar.

Voltemos a Maquiavel. "Podemos dizer isto em geral dos homens: são ingratos, desleais, falsos e mentirosos, tímidos ante o perigo e ávidos de lucro... O amor é um laço ou uma obrigação que estas miseráveis criaturas quebram sempre que lhes dá jeito (...)." Sendo que, a ser essa a nossa natureza, os príncipes não escapam ao retrato.

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