Trump contra todos faz discurso por uma América contra todos

Como se ainda estivesse em campanha eleitoral, Donald Trump insistiu num estilo populista e demagógico. A frase do dia foi: "A América, primeiro!"
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Na manhã desta sexta-feira, Donald Trump, ainda presidente eleito dos Estados Unidos, postou um dos seus já famosos tweets: "Tudo começa hoje." À tarde, o presidente dos Estados Unidos, já ajuramentado, cumpriu a ideia anunciada horas antes. Não por factos realizados, mas pelos factos verbais que irão passar a contar, e muito: as suas palavras no discurso inaugural. Ele cumprimentou, por cortesia, os ex-presidentes presentes (Jimmy Carter, Bill Clinton, George W. Bush e Obama) mas quebrou a tradição ao não invocar qualquer dos Pais Fundadores (Washington, Jefferson...) ou presidente marcante, qualquer que fosse a cor política preferida do empossado (Lincoln, Franklin Roosevelt, Kennedy ou Reagan). Antes de mim, o dilúvio - parece ter querido sublinhar Donald Trump.

Até na pequena anedota Trump quis cortar com o passado. O locutor da inauguração - a voz que anunciava à multidão frente ao Capitólio e ao país, pelas rádios e televisões, a cerimónia de posse - era o mesmo desde 1957. Aos 89 anos, Charles Brotman, 15 mandatos presidenciais depois de apresentar Eisenhower, foi despedido dias antes, por e-mail.

A magnífica voz radiofónica que se ouviu a anunciar foi a de um apoiante de Trump, Steve Ray. Pequeno fait divers, como acabaram por ser o vestido azul-claro da nova primeira--dama, Melania, tão evocativo de uma Jacqueline Kennedy, em 1961, e tão contrastante com o ar pesado de Michelle Obama, como se ela quisesse sublinhar o que o marido não podia: que esta passagem de poder não era só mais uma, comum e tranquila.

Um dos oradores, o senador democrata por Nova Iorque Chuck Schumer, achou, no entanto, que se celebrava ali uma das essências da democracia, "a pacífica transferência de poder". Disse-o como se adivinhasse que o conflito deveria ser expurgado do dia. E lembrou a carta do major Sullivan Ballou, nas vésperas da morte em combate na Guerra Civil, à sua mulher Sarah - a grande oratória americana gosta de se servir dos casos comuns da história para fortalecer o patriotismo. Como se o senador Schumer adivinhasse que o discurso do presidente, que viria a seguir, ia sublinhar a rutura e não a unidade que vai criando uma nação.

Nesta semana, Donald Trump fizera questão de se comparar a Andrew Jackson (na Casa Branca em 1829-1837), o sétimo da lista dos presidentes americanos. Poderia ser sinal de apaziguamento de um político que, por uma vez, não se apresentava como caso único ("vou ser o maior empregador que Deus criou", dissera Trump, antes). Mas alguns especialistas concordaram com a comparação, pois Andrew Jackson foi considerado no seu tempo um corte com o establishment de Washington, sem ligações com as origens dos seus seis antecessores. No dia da tomada de posse de Jackson, a Casa Branca foi invadida e ele fugiu por uma janela, e foi dormir a um hotel. Os conflitos ocorridos entre apoiantes e opositores de Trump, tiveram precedentes, mas de pequena monta - sendo certo que o atual presidente estava preparado, até melhor do que o ilustre antecessor, para responder a eles, pois tinha um hotel seu à espera.

Enfim, veio o discurso do 45.º presidente americano - o acontecimento do dia. "Esta cerimónia tem um sentido muito especial, porque não se trata só de transferir o poder de uma pessoa para outra. Transferimos o poder de Washington para o povo dos Estados Unidos", disse Trump. Repetindo o fio condutor da sua campanha eleitoral, a luta do povo (com ele também, embora agora presidente), contra os políticos.

Disse: "O povo pagou o preço de um poder confiscado pela pequena elite de Washington." E rematou: "Os políticos prosperaram mas os empregos desapareceram e a fábricas fecharam." Frases que têm números a sustentar: a capital Washington é das zonas mais prósperas da América. Verdade apontada pelo novo presidente, embora seja também verdade que ele acabou de inaugurar um Trump International Hotel em frente à Casa Branca, e não na Detroit devastada pelo desemprego. Mas o essencial é que Trump fez esta declaração de guerra aos políticos, numa tribuna pejada deles. Paul Ryan, presidente da Câmara dos Representantes e um dos patrões republicanos do Congresso, mantinha, a dois passos do discurso presidencial, o sorriso estampado. Mas notava-se a preocupação por confirmar que este presidente outsider não está disposto a entrar no redil.

"Mães e crianças são reféns da pobreza nas nossas cidades, ao nosso sistema educativo falta dinheiro, a criminalidade e os gangues privaram o nosso país do seu imenso potencial: esta carnificina americana para aqui e imediatamente", o tom é populista. E os números são distorcidos, há décadas, com exceção do ano de 2015 (aumento de 4%), a criminalidade diminui. Mas o essencial da mensagem é que Trump anunciou que vai prolongar a demagogia da sua campanha eleitoral durante o seu mandato. Os republicanos que o elegeram presidente, e têm a maioria total no Congresso, ficaram a saber que Trump vai manter o discurso, radical, incompatível com a governação.

"Vamos decretar para todas as cidades do mundo ouvirem, (...) a partir de hoje, só será: a América, primeiro!", disse Trump. "Todas as decisões sobre o comércio internacional, as taxas, a imigração, os assuntos estrangeiros serão tomados em benefício dos americanos" - agora é mundo a ficar avisado. Está dito, a América manda. Porque pode. Os outros que não se iludam que lhe podem seguir a política. Não podem.

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