Trump abre guerra com o Twitter mas não consegue passar sem ele

Presidente não gostou que a rede social convidasse os seus mais de 80 milhões de seguidores a conhecerem os factos por detrás de duas das suas mensagens, na prática acusando-o de espalhar "fake news". Trump vingou-se tornando o Twitter e as outras redes sociais mais abertas a processos judiciais.
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O presidente norte-americano assinou esta quinta-feira uma ordem executiva que visa tornar o Twitter e outras redes sociais mais abertas a processos judiciais por causa dos conteúdos publicados pelos utilizadores. É a resposta de Donald Trump, que quando passa mais de um dia sem escrever no Twitter é notícia, à decisão desta plataforma de alertar os seus mais de 80 milhões de utilizadores para duas das suas mensagens.

Há muito que os republicados alegam que são alvo da censura dos gigantes da Internet como o Twitter, o Facebook ou o Google, proprietário do YouTube. Acusações que estes sempre negaram. Mas, em ano de presidenciais, e com a campanha já lançada, Trump quer garantir que tal não existe "censura seletiva"

Para tal assinou a ordem executiva para que seja modificada a lei que protege as redes sociais de processos judiciais por causa da mediação que atualmente fazem do conteúdo. Deixa-as também mais abertas a uma supervisão das autoridades. Trump, que surgiu ao lado do procurador-geral, William Barr, disse que este iria trabalhar com os vários estados para que estes criassem as suas regulamentações e garantam que as empresas que "suprimem a liberdade de expressão" não recebem dinheiro dos contribuintes.

"Estamos aqui hoje para defender a liberdade de expressão de um dos seus maiores perigos", disse Trump, que apelidou as empresas de "monopólios". Questionado sobre o por quê de não apaga a sua própria conta no Twitter, o presidente apontou o dedo aos media. "Se tivéssemos uma imprensa justa neste país faria isso num instante", afirmou.

A ordem executiva deverá ser rapidamente contestada nos tribunais, havendo que alegue que põe em causa a própria liberdade de expressão que Trump diz querer proteger. Uma versão anterior acabou por não ver a luz do dia no verão do ano passado, depois de preocupações dos reguladores de que poderia levar o governo a criar uma "polícia do discurso".

Uma das versões da ordem, a que a CNN teve acesso, acusa as plataformas de não mostrar a "boa fé" necessária sob a atual legislação. E ataca-as por prejudicarem a liberdade de expressão ao serem capazes de "escolher à vontade o discurso ao qual os norte-americanos podem ter acesso".

Os críticos dizem ainda que esta ordem executiva é apenas uma distração das mais de 100 mil vítimas mortais da pandemia de covid-19.

O que aconteceu?

Pela primeira vez, o Twitter colocou uma etiqueta a convidar os utilizadores a conhecerem os factos em duas mensagens do presidente. Nestas, Trump alega que o voto por correio é "fraudulento", que podem ser roubadas as caixas de correio, que há boletins de voto que serão falsificados ou ilegalmente impressos, atacando o governador da Califórnia por estar a enviar boletins para toda a gente no seu estado.

Ao carregar na etiqueta, os utilizadores leem que não há provas de que o voto por correio esteja relacionado com fraude eleitoral, citando quem faz a verificação de factos, explica que na Califórnia só os eleitores registados recebem o boletim de voto e que há já cinco estados onde este método existe, citando neste caso a NBC News.

O Twitter explica ainda a sua decisão: "Adicionámos a etiqueta a duas mensagens de Trump sobre os planos da Califórnia de votar por correio como parte dos nossos esforços de aplicar a nossa política de integridade cívica. Acreditamos que esses tweets podem confundir os eleitores em relação ao que precisam de fazer para receber um boletim de voto e participar no processo eleitoral".

A decisão do Twitter surgiu num dia em que o presidente tinha sido criticado por partilhar uma teoria da conspiração sobre a morte de uma funcionária de um antigo congressista da Florida, atualmente pivot na MSNBC, Joe Scarborough, alegando que este estaria envolvido na sua morte. O viúvo de Lori Klausutis apelidou as acusações de "mentiras horríveis" e pediu ao Twitter para apagar as mensagens de Trump, mas a empresa recusou, alegando que não violavam os termos do serviço.

Outros líderes mundiais não têm a sorte de Trump e já viram mensagens suas apagadas. É o caso do brasileiro, Jair Bolsonaro, mas também do venezuelano, Nicolás Maduro, em mensagens sobre a pandemia do coronavírus.

Como é que Trump respondeu?

O presidente norte-americano reagiu no Twitter, como não podia deixar de ser. "O Twitter agora está a interferir nas eleições presidenciais de 2020. Estão a dizer que as minhas declarações sobre o voto por correio, que vai levar a uma fraude e corrupção massivas, são incorretas, baseadas em verificações de factos por parte da Fake News CNN e do Washington Post da Amazon", escreveu, acrescentando noutra mensagem: "O Twitter está a sufocar completamente a liberdade de expressão e eu, como presidente, não vou deixar que isso aconteça."

Mais tarde prometeu "grandes ações" e explicou noutros tweets: "Os republicanos sentem que as plataformas de redes sociais calam totalmente as vozes conservadoras. Vamos regular fortemente ou encerrá-los antes de permitirmos que isso aconteça. Nós vimos o que eles tentaram fazer, e não conseguiram, em 2016. Não podemos deixar que uma versão mais sofisticada disso volte a acontecer."

Esta quinta-feira prometeu que seria um "grande dia para as redes sociais e para a justiça", assinando mais tarde uma ordem executiva sobre o tema, depois de considerar "ridícula" a forma como o Twitter estava a tentar defender a sua posição sobre o voto por correio. Dizendo que há exemplos disso em todo o lado, rejeitou a hipótese de o sistema eleitoral norte-americano se tornar motivo de chacota em todo o mundo.

Antes, já o próprio Jack Dorsey, cofundador e CEO do Twitter, tinha vindo para a rede social alegar que a empresa não é "árbitro da verdade". Isto depois de o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, ter comentado a polémica numa entrevista com a Fox News: "Sabem, acredito fortemente que o Facebook não deve ser um árbitro da verdade de tudo o que as pessoas dizem online. Acho que, de uma forma geral, as empresas privadas não deviam estar na posição de o fazer."

Dorseu acrescentou na resposta: "A nossa intenção é ligar os pontos de declarações contrárias e mostrar a informação em causa para que as pessoas possam decidir por elas. Mais transparência da nossa parte é crítica para que as pessoas possam ver claramente o porquê por detrás das nossas ações".

Numa segunda mensagem, assumiu responsabilidades: "Verificação de factos: há alguém que em última análise é responsável pelas nossas ações enquanto empresa e esse alguém sou eu. Por favor deixem os nossos funcionários de fora disto. Vamos continuar a apontar informação incorreta ou contestadas sobre as eleições em todo o mundo. E vamos admitir e assumir qualquer erro que façamos."

O que está em causa nos EUA?

Há muito que a direita conservadora norte-americana se queixa de "censura seletiva" por parte das grandes plataformas, que ao abrigo da lei podem usar os critérios que entenderem para moderar os conteúdos.

No início da Internet, uma série de processos judiciais nos EUA obrigaram a definir o papel das plataformas. Deviam ser tratadas como meros distribuidores, como os serviços de telefone, publicando o conteúdo sem alteração, ou podiam intervir e, ao servir de moderadores, ser responsáveis legalmente pelo conteúdo que deixassem passar?

O artigo 230 da Lei de Decência das Comunicações, de 1996, veio garantir que essas plataformas podiam moderar os conteúdos, não correndo o risco de serem processadas pelo que deixavam passar -- tendo sempre que cumprir com os direitos de autor e remover os conteúdos pirateados. "Nenhum provedor ou usuário de um serviço de computador interativo deve ser tratado como o editor ou orador de qualquer informação fornecida por outro provedor de conteúdos de informação", diz o texto.

Para os conservadores, isso significa que tem que haver imparcialidade política, queixando-se de que são alvo de censura. Mas as medidas aprovadas agora por Trump podem não criar a Internet que ele deseja, já que impedidas de moderar os conteúdos como até agora, as empresas podem adotar medidas mais restritivas ou, em última análise, deixar de moderar de todo, incluindo no que diz respeito a apagar spam, já que qualquer ação poderá deixá-los vulneráveis a processos judiciais.

Trump e o Twitter

"Amo o Twitter... é como teres o teu próprio jornal --- sem as perdas", escreveu Donald Trump a 10 de novembro de 2012 nesta rede social.

O presidente norte-americano tem mais de 80 milhões de seguidores no Twitter -- e o número não para de crescer, tendo ganho entre as 16:00 e as 17:00 desta quinta-feira, por exemplo, quase seis mil novos seguidores. Na política, fica apenas atrás do seu antecessor, Barack Obama, que tem 118 milhões de seguidores e é o mais popular neste rede social. Está ainda atrás de cinco músicos (Justin Bieber, Katy Perry, Rihanna, Taylor Swift e Lady Gaga) e de um futebolista, o português Cristiano Ronaldo (que tem 84 milhões de seguidores).

Há quatro anos, quando era ainda apenas candidato, o número de seguidores não chegava aos sete milhões. Já na Casa Branca, a plataforma tornou-se no principal meio de comunicação do presidente -- que a usa para fazer anúncios, mas também para atacar qualquer adversário.

"É uma tecnologia perfeitamente adaptada à sua necessidade de atenção e, mais sinistramente, à sua imprudência. Ao misturar discurso privado e público, o Twitter permite a Trump transformar as conversas de balneário, o seu idioma favorito, em discurso presidencial. E isso permite-lhe desviar a atenção do público, atraindo constantemente o foco dos media para si próprio sempre que este começa a vaguear", escreveu o Politico em janeiro de 2018.

Obama tinha tornado popular a campanha eleitoral através das redes sociais, mas foi Trump que em 2016 ajudou a transformar o Twitter. Com a sua eleição, "a rede social tinha-se tornado na nova praça pública", segundo o Politico.

"Boom. Eu carrego e em dois segundos: 'Notícia de última hora'", terá dito um dia Trump, segundo o The New York Times, sobre o impacto daquilo que escreve no seu iPhone. O jornal analisou em janeiro de 2019 os primeiros três anos de mandato do presidente e concluiu que ele tinha escrito ou partilhado mais de 11 mil mensagens desde que chegara à Casa Branca.

No início da presidência, era uma média de nove mensagens por dia -- chegou a dizer na campanha que deixaria de tweetar quando fosse presidente. A 22 de janeiro deste ano, bateu o seu recorde de tweets desde que chegou à presidência, com 142 mensagens, muitas sobre o julgamento do impeachment que estava a decorrer no Senado. O seu recorde continua a ser contudo pré-Casa Branca, com 161 tweets e retweets de fãs do "Celebrity Apprentice", a 5 de janeiro de 2015.

O ex-vice-presidente Joe Biden, provável candidato democrata nas eleições de novembro, batizou Trump em março de "presidente tweety", numa resposta a todas as vezes em que este lhe chamou "sleepy Joe", ou Joe sonolento.

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