Trumbo: Hollywood reflecte sobre as suas contradições
O filme Trumbo (estreia hoje) tem como intérprete principal o veterano Bryan Cranston, uma das personalidades mais populares do universo das séries televisivas, como protagonista de Breaking Bad (2008-2013). E não será arriscado supor que a maioria dos espectadores identificará mais facilmente Cranston do que a figura de Dalton Trumbo (1905-1976) que ele interpreta com uma energia contagiante que, além do mais, lhe valeu uma nomeação para o Óscar de melhor actor.
Insolitamente, a campanha promocional do filme (em Portugal como nos EUA) insistiu em destacar apenas o título Trumbo, omitindo qualquer informação específica sobre a personagem, menosprezando até a possibilidade de dar algum relevo ao nome de Cranston. É mais um exemplo desconcertante da evolução global do marketing cinematográfico, por um lado formatado pela lógica dos "blockbusters, por outro lado quase sempre incapaz de atender às singularidades históricas e temáticas que os filmes contam.
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Dalton Trumbo foi um dos nomes inscritos na tristemente célebre lista dos "Dez de Hollywood", estabelecida pelo Congresso dos EUA a 25 de novembro de 1947. A lista surgiu nos primórdios da Guerra Fria, quando os conflitos de interesses com a União Soviética passaram a ser dirimidos (internamente) através da identificação dos cidadãos considerados suspeitos por pertencerem ao Partido Comunista americano ou terem manifestado alguma simpatia com as suas posições políticas. Para a história, ficou como o "maccartismo" (designação derivada do nome de Joseph McCarthy, senador americano pelo estado do Wisconsin, que teve um papel determinante em todo o processo).
"Caça às bruxas"
A Comissão para as Atividades Anti-americanas foi a entidade que, na prática, conduziu os interrogatórios a muitas personalidades de Hollywood, procurando esclarecer a sua filiação comunista ou apelando à denúncia de nomes que pudessem ser conotados com o PC. A frase "are you now or have you ever been..." ("é agora ou alguma vez foi..."), utilizada num dos cartazes do filme nos EUA, remete para a pergunta que a Comissão colocou a muitos membros da comunidade de Hollywood ("é agora ou alguma vez foi militante do PC?"). A sua abreviação "abstracta" reflecte a incapacidade de contextualização da campanha publicitária.
Nos "Dez de Hollywood" figuravam, além de Trumbo, cineastas como Herbert J. Biberman ou Edward Dmytryk, que viriam a assinar clássicos como O Sal da Terra (1954) e O Homem das Pistolas de Ouro (1959), respetivamente. A sua inclusão na lista resultou da recusa em fornecer nomes ou, invocando a Constituição dos EUA, responder a qualquer pergunta sobre as suas perspetivas políticas. Escusado será sublinhar que tudo isso foi vivido num clima de enorme polémica política e social, em particular gerando dramáticas divisões entre personalidades e organizações da indústria cinematográfica.
No seu livro clássico sobre a "caça às bruxas" em Hollywood (Naming Names, 1980), Victor Navasky lembra que estava em jogo "uma política de Estado que encoraja os seus cidadãos à delação", levando também "instituições, organizações e associações sindicais" a comportamentos que "minavam os valores cuja defesa estava estabelecida na sua função e vocação".
A história recontada
Dirigido por Jay Roach, o filme Trumbo tem suscitado alguns reparos sobre as liberdades de "dramatização" do argumento escrito por John McNamara, a partir da biografia de Bruce Alexander Cook (publicada em 1977, cerca de um ano depois da morte de Trumbo). Especialmente discutido é o retrato do ator Edward G. Robinson (interpretado por Michael Stuhlbarg) que, de facto, embora tenha reconhecido à Comissão que chegou a funcionar como "fachada" ("front") de algumas organizações comunistas, nunca denunciou qualquer nome.
Mesmo considerando que Trumbo possui as virtudes e os limites de um ensaio biográfico mais ou menos académico, importa dizer, em defesa do filme, que o seu objetivo está para além de qualquer descrição "panfletária". Assim, somos também confrontados com a militância, contra a ameaça "vermelha", do ator John Wayne (David James Elliott) e, sobretudo, da poderosa e muito influente cronista Hedda Hopper (Helen Mirren). É ainda recordado o papel determinante de Kirk Douglas (Dean O"Gorman) na revalorização do nome de Dalton Trumbo, ao assumir publicamente que ele era o argumentista de Spartacus (1960), uma produção do próprio ator, com realização de Stanley Kubrick. Seja como for, o essencial joga-se na caracterização da personalidade criativa de Trumbo, tentando defender até ao limite o seu gosto - e a sua arte - de grande narrador.
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Nesta perspetiva, vale a pena recordar alguns antepassados deste filme: O Testa de Ferro (1976), de Martin Ritt, em que Woody Allen interpretava alguém que dava o nome para que um argumentista marginalizado pudesse apresentar o seu trabalho; Na Lista Negra (1991), de Irwin Winkler, centrado num realizador acusado de "desvios" anti-americanos; Boa Noite, e Boa Sorte (2005), de George Clooney, sobre o jornalista Edward R. Murrow e o seu combate contra o senador McCarthy. Enfim, Trumbo prolonga o empenho de Hollywood em lidar com as tensões e contradições da sua própria história.
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