TROPA, FUTEBOL E UMA MOEDA PARA TOMAR UM CAFÉ

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Tens é de escrever um livro sobre os malucos dos cafés!", atirou-me há dias um amigo, por causa de uma crónica escrita aqui há tempos, em que recordava alguns dos lunáticos e excêntricos que assombravam ou faziam escritório dos cafés da Lisboa da minha infância e juventude.

Não eram tantos assim que dessem para encher um livro inteiro, esses loucos que se extinguiram com o desaparecimento dos grande cafés em que tinham assentado praça, e de que acabaram por se tornar atracções. Mas, se a eles juntássemos os maluquinhos das ruas da Lisboa desses tempos, talvez já desse para um opúsculo em edição de autor.

A Baixa dos anos 50 e 60 era o grande habitat dos loucos de rua da capital. "Deve haver algures por aqui uma fábrica onde os fazem", dizia a brincar um meu tio-avô ocioso e endinheirado, que conhecia meia Lisboa e a Baixa toda, distraía os dias a flanar e a cavaquear pelos cafés, livrarias, lojas e escritórios, e era tu-cá-tu-lá com os sãos e os dementes da zona.

Os Restauradores eram território de três exemplares inesquecíveis. Um deles, que devia ter sido soldado, passava o tempo ou a fazer ordem unida ou a gritar instruções para um pelotão invisível, entre o Condes e o Éden. Às vezes aparecia com uma vassoura ao ombro, que fazia de arma. Se alguém lhe atirava uma piada ou o incomodava durante as "manobras", apontava-lhe o cabo e "disparava". Este tontinho andava sempre com o mesmo casaco, pesado de caricas coladas, como se fossem condecorações. Perfilava-se e batia a pala a quem lhe desse uma esmola, e dizia "Obrigado, meu capitão!", fosse o benemérito homem ou mulher.

O outro era conhecido como "o maluquinho da bola". Percorria os Restauradores e o Rossio com uma lata de conservas colada ao ouvido, relatando alto jogos de futebol imaginários. Mas as equipas que os protagonizavam eram bem reais, porque o "maluquinho da bola" conhecia de cor os jogadores de todos os clubes portugueses, e por isso os relatos tinham uma assombrosa verosimilhança.

Constava na Baixa que já tinha sido uma pessoa normal. Um dia, ganhou o Totobola, mas a mulher fugiu com outro homem levando o dinheiro todo, e ele perdeu o juízo. Por isso, tinha direito a um "Coitado!" dos ociosos que conversavam e viam passar as senhoras à porta dos comércios.

O terceiro maluco parecia ser em tudo uma pessoa como as outras, menos quando chegava ao pé de alguém e abria a boca, de onde saía uma só frase: "Não me dá uma moeda para tomar um café?" Todo o dia aquela criatura calcorreava a Baixa de lés a lés a repetir a mesma coisa.

Uma tarde, o meu ocioso e endinheirado tio-avô, que pouco antes tinha dado ao lunático uma moeda de 25 tostões para o café, deu com ele sentado no Chiado, a beber de uma garrafa de vinho tinto, daquelas sem rótulo.

Fingindo-se zangado, o meu familiar disse-lhe: "Ouve lá, meu desgraçado, então pedes-me dinheiro para café e estás a beber vinho? Grande mentiroso!". Responde o outro: "O café é só depois da sobremesa!"|

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