Trocou as obras para Lenny Kravitz ou De Niro por uma tasca em Jersey City

Os estudos nunca disseram muito a Michael Casalinho, por isso foi trabalhar para o pai na construção. Depois de uma passagem pela banca, a paixão pela cozinha venceu. <em>Neste verão o DN republica algumas das reportagens integradas na rubrica sobre portugueses e luso-americanos de sucesso Pela América do Tio Silva. Este artigo foi publicado originalmente a 9 de junho de 2017.</em>
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Aos 18 anos, Michael Casalinho foi viver sozinho. "Por causa do clash com o meu pai." Mas continuou a trabalhar na empresa de serralharia que este criou quando foi para os EUA nos anos 80. Curiosamente, o primeiro emprego até foi na construção de um restaurante. Tinha 16 anos. E enquanto o pai fazia a obra, Michael "limpava mesas, levantava copos, punha fora o lixo". A moda já era uma paixão na altura, mas foi a cozinha que venceu. Hoje é dono da tasca Broa, na Grove Street, em Jersey City, uma espécie de cave numa rua onde se encontra também a mercearia Mashallah, o restaurante El Salón de Las Americas ou o Ibby"s Falafel, que promete "o falafel que tornou o falafel famoso".

"Quando comecei na empresa era inverno, estava mesmo frio. O armazém onde trabalhavam os soldadores era enorme. Eu tinha tanto frio!", recorda Michael, sentado a uma mesa do Broa, enquanto atrás do balcão os empregados, todos portugueses, preparam o jantar. Nas paredes há galos de Barcelos, xailes, réstias de alhos, fotografias antigas da família do dono. Na ementa não falta o frango à passarinho, a orelha de porco, o bacalhau à brás, o polvo, o chouriço assado, o presunto, os pastéis de bacalhau, a salada de feijão-frade, as azeitonas - petiscos que acompanham com um copo de branco fresquinho ou com um tinto do douro. O espaço funciona também como mercado, com Michael a vender azeite português, atum em lata "do nosso", Cerelac, chocolate Regina ou Sumol.

"Isto é uma casa portuguesa até à raiz", garante Michael, num português muito próximo da perfeição. Apesar de ter já nascido americano, o chef garante ter muito orgulho em Portugal. "Se tiver filhos vão ter de ouvir fado", diz, enquanto conta porque quis explorar o conceito de tasca, um "espaço para nós portugueses", longe da "americanização da comida tradicional em Newark". "Sempre tive uma paixão por restaurantes. Sempre adorei comida", conta, enquanto recorda como um dia, ao mexer em papéis antigos, encontrou uma carta que escreveu aos 12 anos em que dizia: "Quero ter o meu próprio nightclub e restaurante." Há pouco mais de dois anos cumpriu o sonho. Juntou-se à irmã, que estava "cansada do mundo da finança", e arranjaram este espaço em Jersey City: ela abriu uma loja de malas, joias e acessórios em cima, ele a tasca, em baixo. "Percebi que seria a próxima área trendy", sublinha. Antes de confessar: "Estava a sufocar em Newark." Tudo porque ali os portugueses vivem numa bubble, uma bolha que explica porque os pais, sobretudo a mãe, ainda hoje falam mal inglês. "Desenrascam, mas..." Em Newark não é preciso: "a padaria é portuguesa, o café é português..."

Newark foi a escolha óbvia quando os pais foram para a América. Criado, ele, na aldeia de Caranguejeira, no distrito de Leiria, ela nas Colmeias, ali perto, os pais de Michael emigraram primeiro para França, mas ao fim de uma década e por pressão da mãe, a família acabou por se mudar para Newark, onde esta tinha o único irmão. Com eles trouxeram as duas filhas mais velhas, ainda pequenas. Michael já nasceu nos EUA. Por isso tem nacionalidade portuguesa e americana, mas as irmãs são franco-portuguesas.

Depois das dificuldades dos primeiros tempos, os Casalinho até se deram bem na vida. E na altura em que o DN falou com Michael estavam num cruzeiro. Mas tiveram de trabalhar duro. Soldador em França, o pai de Michael começou na construção civil com o cunhado, antes de criar a sua própria serralharia. Ambos trabalharam em 1993 no World Trade Center, em Nova Iorque, ali do outro lado do rio Hudson, depois do primeiro ataque ao centro financeiro. O pai "trabalhava de dia e de noite" e hoje Michael lamenta não ter crescido mais próximo dele. Já a mãe, depois de criar os filhos, trabalhou numa ourivesaria e ainda hoje renova a licença de esteticista.

Os pais insistiram para Michael estudar, mas ele diz que sempre foi "a black sheep da família", a ovelha negra que estava longe de conseguir as boas notas das irmãs. E a ida para um liceu católico só de rapazes, não melhorou as coisas. "Sem miúdas para me distrair achei que ia ser melhor. Mas foi pior. Um monte de gajos juntos, dá palhaçada", conta. E confessa que ainda hoje não lê muito, apesar de mostrar com orgulho The Portuguese Travel Cookbook, livro de Nelson Carvalheiro, que junta fotografia, reportagem de viagem e culinária.

As boas notas continuaram a não aparecer e surgiu a oportunidade de trabalhar com o pai. "Ele era muito: "tem de se fazer. Temos de pagar as contas, nem que seja a varrer"", conta Michael. Na altura, não gostava de ouvir esses conselhos, mas hoje agradece "muito que ele tenha sido assim. Que não tenha dado tudo ao filho". Até porque isso ajudou a desenvolver o seu "lado empreendedor".

Uma das coisas que dava choque entre pai e filho era a paixão deste pela moda. "O meu pai dizia que era coisa para mulheres. Que não era de macho", explica. Mas não impediu Michael de, no grupo de jovens da igreja, dedicar-se a criar desfiles de moda. "Eu construía o palco, escolhia a roupa, escolhia os modelos, angariava os fundos. Todo o processo", recorda. Foi nessa época que foi ao BCP - o banco na altura tinha agências nos EUA - pedir um patrocínio. E assim começou a trabalhar na banca.

"Desisti de trabalhar com o meu pai. Arranjei emprego no banco. Punha selos em cartas, comecei na cave. Ia levar o correio aos escritórios", lembra Michael, orgulhando-se de "andar de fato e gravata". Mas rapidamente passaria na cave para o 3.º andar, o do marketing. Tudo mudou no dia em que estava a fumar um cigarro cá fora e o Chief Marketing Officer (CMO) lhe perguntou se não é o tipo no jornal. O "big boss", como lhe chama, lera um artigo no jornal português sobre um desfile de Michael. "I need a guy like you", disse-lhe - "preciso de um tipo como tu". Dito e feito, depois de uma conversa com a chefe, Michael passou para a equipa do marketing. Trabalhou três anos no banco, onde era responsável pela organização de eventos. E até conheceu Eusébio.

Mas um dia, diante da pressão da mãe, acabou por desistir da banca e voltou a trabalhar com o pai. "Deixei o fato e a gravata, deixei o meu próprio escritório. Voltei a soldar, a levantar vigas, a sujar-me. Deixei uma vida boa com a esperança de vir a ser alguém na vida", explica. Mas os choques com o pai continuaram. De tal forma que Michael chegou a pensar abrir a sua própria empresa para competir com a dele. Apesar disso nem tudo foi mau. "Até gostava de ter as mãos na massa. Ver, cortar, criar, montar. Aprendi a ler planos de obras. Aprendi a gostar de arquitetura", explica o chef, que recorda as obras que fizeram para figuras públicas como Lenny Kravitz, Calvin Klein ou Robert De Niro. Foi aliás num prédio do ator que Michael fez o seu último trabalho na empresa do pai.

Além das tensões familiares, foi um acidente que marcou o momento da viragem na vida do jovem. "Eu era muito arrogante. Tinha a mania que era o filho do papá. Pagava copos no bar. Pagava champanhe às miúdas. Um dia ia para casa. Tinha saído com os amigos. Adormeci a conduzir. Não levava cinto", conta. A carrinha pick up que conduzia acabou espetada numas árvores. Michael sofreu apenas um pequeno corte numa orelha, mas o susto foi como um despertar. "Pensei: "é um milagre. A minha vida tem de mudar." Deixei de beber álcool. E deixei de trabalhar para o meu pai."

Michael deixou a empresa do pai, mas não a construção. Começou por criar a sua própria empresa. A Next Level Contracting, que subcontratava outras empresas e cobrava uma comissão. "Comecei a fazer bom dinheiro, assim, sozinho." Mas o bichinho da cozinha estava lá. E um dia decidiu alugar um restaurante que ajudara a construir. O Café Opção ficava em Newark, mas ao fim de cinco anos, cansado da cidade onde crescera, decidiu lançar-se num projeto próprio e de raiz em Jersey City.

A passagem do furacão Sandy, em 2012, atrasou a abertura do Broa. "Tive água quase até aqui", diz, apontando uma marca bem perto do teto. Mas há pouco mais de dois anos abriu mesmo a tasca, enquanto, por cima, a irmã abria a boutique Feena. "Criei o espaço sem a família saber exatamente para o que era. A primeira vez que o meu pai aqui entrou, vieram-lhe as lágrimas aos olhos quando viu a parede com as fotografias de toda a família", diz Michael, enquanto explica que sempre achou a sala pequena, mas o que o levou a decidir-se por aquele espaço foi o jardim nas traseiras, ainda em obras, que é "quatro vezes maior" do que a sala.

Cozinhar foi uma coisa que Michael sempre gostou de fazer. "Sempre ajudei a minha mãe e a minha avó." Pelo Broa passam clientes que conhecem Portugal, outros nem tanto. Mas "não há nada que lhes ponha à frente que não comam", garante o chef. Para o futuro, além de um projeto ligado a sopas, a moda ainda faz parte dos planos de Michael que admite lançar "uma linha de casacos de cozinheiro" da sua autoria.

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