Triste gente
Numa das mais infelizes declarações do seu mandato, Cavaco Silva afirmou não ser possível pedir mais sacrifícios aos portugueses. Esta semana confirmamos o que já todos prevíamos: não era verdade. Por causa de décadas de má governação e com o contributo indesmentível deste Governo, que agora aparece na pele do bombeiro que depois de ter deitado fogo à mata vem dizer ter conseguido conter o incêndio, ficamos a saber que as privações que já estávamos a sofrer eram só o princípio dum longo processo.
Esperávamos um cenário pior, não há como negar. Talvez a situação não seja tão má como era apregoado, talvez a troika tenha percebido que as medidas impostas à Grécia e à Irlanda não fizeram mais que ajudar a naufragar o barco já prestes a afundar.
Seja como for, como escrevia o Esteves Cardoso há uns anos, não vão ser poemas nem rosas.
Mas voltemos ao Presidente da República. É provável que Cavaco Silva tenha cometido um erro na declaração e tivesse querido dizer: não é possível pedir sacrifícios aos portugueses se forem portugueses a pedi-los. E até podia ir um bocado mais longe dizendo que não é possível fazer reformas em Portugal se forem portugueses a propô-las. Estaria o Presidente coberto de razão.
Olhamos para a nossa história recente e não é difícil perceber que as grandes mudanças resultaram sempre de imposições externas. As outras vindas do FMI, a adesão europeia, a entrada no Euro, entre outras, resultaram sempre em alterações profundas menos causadas por vontade própria e mais por imposição alheia.
Lendo o memorando de entendimento deparamos com um conjunto de propostas legislativas que vão alterar radicalmente a estrutura económica e social do nosso país. Medidas para a reestruturação do sistema judicial, para acabar com o desmando nas empresas públicas, institutos públicos e restantes sanguessugas para-estatais, para um funcionamento transparente, mais eficaz e com menos desperdício da administração pública, para a revitalização do mercado de arrendamento, para o mercado de trabalho, para o mapa autárquico, para as parcerias público-privadas e muitas outras que o mais elementar bom senso vem aconselhando há muito tempo.
Todos os partidos - excepção feita aos que sonham ver Portugal transformado numa Coreia do Norte - aplaudiram de pé as tais reformas estruturais. Mas, será que algum dos principais actores políticos desconhecia a urgência daquelas reformas? Claro que todos sabiam e, sejamos justos, todos tinham falado da sua necessidade. Apenas falado. Uns mais que outros, é certo. E, como é evidente, há quem tenha podido levá-las a cabo e quem não tenha tido oportunidade de as implementar.
Alguém terá ficado surpreendido com as palavras do membro da troika quando disse que a crise internacional apenas tinha mostrado as nossas crónicas debilidades? Não, obviamente.
Quantas mudanças vitais, nestas décadas, foram travadas por interesses partidários puramente tácticos? Quantas centenas de vezes ouvimos falar de reformas estruturais que nunca saíram do papel por medo, calculismo, incompetência ou simples laxismo? Quantas vezes acordos foram rasgados por pressão dum grupo ou duma corporação sobre um partido ou sobre um Governo? Quantas vezes vimos partidos negarem os seus próprios princípios ideológicos só por, irresponsavelmente, pensarem que fazer oposição é estar contra qualquer decisão dum Governo?
Muitas vezes, demasiadas vezes, e o resultado está bem à vista.
O aplauso dos partidos a estas reformas é mais uma prova da cobardia e da irresponsabilidade de todos os actores políticos portugueses, mais e menos recentes. Agora não há como negar: eles sabiam que eram fundamentais e, mesmo assim, ou ficaram calados ou não tiveram a coragem de as fazer ou apoiar.
Agora há um bode expiatório, não é preciso dar a cara. Se alguém se queixar, se a contestação for dura, se as corporações berrarem, a culpa é dos estrangeiros, desses malandros do FMI.
Triste gente que precisa que a obriguem a fazer aquilo que já sabia ser necessário.