Triste aniversário

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A invasão da Ucrânia completa um ano hoje 24 de fevereiro. O que o Presidente Putin denominou de "operação especial", de pequena duração, transformou-se em uma guerra com milhares de mortos e feridos, uma intensa crise de refugiados e de deslocamento populacional e um imenso custo financeiro e material para os dois países. No âmbito regional e global, de acordo com o Banco Mundial, a guerra também contribuiu para uma crise energética e alimentar, incrementando a inflação e a desaceleração da economia mundial, com possibilidade de recessão em 2023.

Se os resultados são tão desastrosos, por que a guerra não é substituída por negociações que tentem construir uma paz duradoura? As guerras, normalmente, começam com a ilusão de que serão rápidas e vencidas com baixo custo financeiro, material e humano. Essa ilusão contribui para que elas se tornem mais fáceis de começar do que de acabar. Muitas vezes, os sacrifícios humanos e as perdas materiais consumidas no conflito tornam mais difícil a possibilidade de uma solução política se os objetivos pretendidos não foram alcançados e se um dos adversários conseguiu alguma vantagem. O lado em desvantagem pode considerar um sinal de fraqueza ter a paz como objetivo. Assim sendo, poderá continuar lutando na esperança de que ao prover mais recursos humanos e materiais possa alterar o curso da guerra em seu proveito, mesmo que isso signifique a possibilidade de piorar ainda mais a sua situação. Essa dinâmica pode ser chamada de "armadilha da guerra".

A guerra que envolve a Rússia e a Ucrânia é mais um exemplo dessa dinâmica. Os dois países estão envolvidos nessa armadilha, e em um processo de paralisia político-diplomática. O discurso do Presidente Zelensky é que não negociará com o Presidente Putin, e que a Ucrânia continuará a lutar em busca da vitória, que seria materializada pela recuperação de todos os territórios ocupados pelos russos desde 2014, ou seja, inclusive a Crimeia. Esse discurso expressa um desalinhamento entre objetivos políticos desejados e meios para alcançá-los. A Ucrânia depende fundamentalmente da ajuda económica, humanitária e militar dos EUA e seus aliados, que até novembro de 2022 representou cerca de 115 bilhões de euros. Ajuda essa que pode não continuar caso o seu valor se torne proibitivo ou a continuação da guerra se torne prejudicial aos interesses nacionais dos países que hoje a concedem.

Do lado russo, embora Putin se declare aberto às negociações, Moscovo dá sinais de que só se propõe a negociar se mantidos os territórios conquistados. A Rússia também iniciou a guerra com um desalinhamento entre objetivos e meios. Os vagos objetivos políticos da "desnazificação e desmilitarização" que, teoricamente, estariam relacionados com uma troca de regime, foram substituídos, até o momento, por objetivos limitados concretos. Putin tem sinalizado que, além da neutralidade da Ucrânia, deseja manter uma faixa de terra ligando a Crimeia à Rússia, evitando depender apenas da conexão através da ponte sobre o Estreito de Kerch. Para os russos, é importante que as dimensões dessa faixa garantam, também, o abastecimento de água do Rio Dnieper para a Crimeia. Até agora, apesar da heroica resistência da Ucrânia, a Rússia continua mantendo em seu poder cerca de 20% do país invadido, inclusive toda a costa do Mar de Azov. Além do mais, segue bloqueando as linhas de comunicações marítimas da Ucrânia que não fazem parte do acordo com a ONU para o transporte de grãos, e atacando a infraestrutura ucraniana para além da zona imediata de combate.

Embora a guerra deva terminar no futuro, ninguém sabe quando e como esse futuro chegará. A História mostra que terminar uma guerra na qual um dos lados não foi completamente derrotado implica em negociações e concessões. A retórica de ambos os lados de que a vitória será conseguida é um fator importante no prosseguimento da guerra. Esse discurso por parte da Ucrânia é fundamental para que a ajuda económica e militar continue a fluir. Enquanto ela persistir, a probabilidade de negociações que impliquem em concessões territoriais é baixa. No entanto, para uma paz duradoura o ideal é que as condições estabelecidas ao final do conflito sejam aceitáveis para o vencido.

O problema para a Ucrânia é que nos Estados Unidos já surgem declarações de autoridades, inclusive do Chefe do Estado-Maior Conjunto, General Mark A. Milley, que colocam em dúvida a capacidade dos ucranianos de retomarem os territórios perdidos, e sugerindo o início de negociações entre os contendores. Nessa mesma linha, um estudo da Rand Corporation, publicado em janeiro deste ano, apresenta conclusão semelhante. O documento afirma, ainda, que o prolongamento da guerra é ruim para os interesses nacionais dos EUA e sugere estratégias para o governo norte-americano encaminhar o fim do conflito.

Lamentavelmente, um ano após o início da guerra, russos e ucranianos continuam engalfinhados na busca da vitória militar. Portanto, não há nada a comemorar. Triste aniversário!

*Almirante Reformado (Brasil). Doutor em Relações Internacionais (PUC-Rio). Autor do livro a Diplomacia de Defesa na Política Internacional.

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