Trinta anos de Mugabe

Chegou ao poder pela via democrática, com a aura de herói da libertação do povo, mas Robert Mugabe não demorou muito a tornar-se um déspota que arruinou a economia do seu país e lançou uma onda de repressão.
Publicado a
Atualizado a

Foi nos bancos da escola secundária do Transval Oriental, hoje Mpumalanga, na África do Sul, que Kaiser Nyatsumba ficou a saber que Robert Mugabe acabara de ganhar as primeiras eleições multipartidárias na Rodésia do Sul, prestes a ser chamada Zimbabwe. O sul-africano, agora jornalista no britânico The Independent, recordou em 2002 como a notícia o deixou «de bom humor». Afinal, Mugabe «era um homem do qual só podíamos estar imensamente orgulhosos».

O primeiro primeiro-ministro negro do país tinha tudo para ser o líder ideal: «Educado e defensor da reconciliação antes de Nelson Mandela fazer o mesmo ao pôr fim ao apartheid na África do Sul [em 1994].» Mas à medida que os anos iam passando e o líder zimbabwense se perpetuava no poder, primeiro como chefe de governo e depois como presidente, Nyatsumba, como muitos outros, dos habitantes do Zimbabwe à comunidade internacional, ficaram desiludidos. O herói da libertação e líder moderado depressa passou a usar a máscara de déspota, autocrata e, mais tarde, de pária internacional.

Hoje, o homem que a 4 de Março celebra trinta anos da sua eleição como primeiro-ministro tenta mostrar ao mundo uma máscara de conciliador, capaz de manter um governo de união nacional com o Movimento para a Mudança Democrática (MDC, na sigla em inglês) – apesar de após as eleições de 2008 ter lançado uma violenta onda de repressão contra os políticos da oposição.

A aura de herói de Mugabe começou a construir-se em 1964, quando foi preso mal acabara de regressar ao Zimbabwe depois de quatro anos de exílio na Tanzânia, onde fundou a União Nacional Africana do Zimbabwe (ZANU), com o reverendo Ndabaningi Sithole. O movimento surgia como alternativa à União Africana do Povo do Zimbabwe (ZAPU) de Joshua Nkomo.

Nascido a 21 de Fevereiro de 1924 na missão Kutama, na então colónia britânica da Rodésia do Sul, Robert Gabriel Karigamombe Mugabe era o terceiro dos quatro filhos de Gabriel e Bona, um casal de etnia shona. Depois de perder os dois filhos mais velhos, o seu pai, carpinteiro, acabaria por abandonar a família. E foi a sua mãe quem conseguiu que Mugabe, então com dez anos, fosse educado pelos jesuítas que dirigiam a missão.

Excelente aluno, à formação de professor primário Mugabe iria juntar mais tarde um mestrado em História e um doutoramento em Literatura Inglesa na universidade sul-africana de Fort Hare. Foi ali que teve o primeiro contacto com a política.

Contemporâneo de futuros líderes nacionalistas africanos, como Nelson Mandela, na mais antiga instituição de ensino da região para negros, Mugabe acabaria por voltar à Rodésia com a cabeça cheia de ideias de mudança.

Foi durante os anos que passou como professor, primeiro na Rodésia do Norte (actual Zâmbia) e depois no Gana, que o actual presidente do Zimbawe se familiarizou com o marxismo, muito por influência de Kwame Nkrumah, que inspirou toda uma geração de líderes negros. Enquanto radicalizava cada vez mais as suas posições, conheceu a sua primeira mulher, a ganesa Sally Hayfron. E juntos voltaram à Rodésia do Sul, em 1960.

Nesse ano, abandonou o ensino para se juntar a Joshua Nkomo na luta pela independência. Orador brilhante, foi escolhido como secretário da propaganda da ZAPU. Mas rapidamente as divergências surgiriam entre os dois homens e Mugabe refugiou-se na Tanzânia, onde fundou a ZANU.

Preso e condenado a dez anos de prisão pelos colonizadores britânicos – por encorajar a subversão – mal voltou ao seu país, foi eleito na prisão para a liderança do partido, apesar de a ala militar da ZANU só em 1976 o reconhecer como seu chefe. É da sua cela que vê o primeiro-ministro colonial Ian Smith declarar a independência unilateral da Rodésia. Foi esta a forma que o regime de Smith encontrou para manter o regime branco, rodeado pelas guerras coloniais em Angola e Moçambique e depois de ver vários líderes negros chegarem ao poder após a independência dos seus países. Desde então, Smith passa a aplicar um modelo semelhante ao do apartheid na África do Sul, com os negros reduzidos a algumas zonas de onde só podiam sair com passes. Os brancos ficavam com a posse das terras.

Apesar de passar pela trágica morte do filho de três anos, Mugabe aproveitou o tempo na prisão para completar a sua formação académica. Libertado em 1974, depois de uma passagem pela Zâmbia Mugabe juntou-se no ano seguinte a outros membros da ZANU em Moçambique, onde  recebeu a protecção do presidente Samora Machel. Este acabara de assumir a liderança do país após uma longa guerra pela independência contra Portugal. Foi a partir de Moçambique que Mugabe formou uma guerrilha capaz de combater o exército da Rodésia.

Estima-se que a guerra civil rodesiana tenha feito perto de trinta mil mortos, com os combates a continuarem até 1979, quando os britânicos decidiram intervir e promover um cessar-fogo que ficou conhecido como os Acordos de Lancaster House, assinados em Londres. Pressionado pelos Estados Unidos, Ian Smith teve de aceitar o fim do domínio da minoria branca. Em troca, Mugabe aceitou que a nova Constituição reservasse vinte lugares no Parlamento para os brancos e uma moratória que proibia qualquer emenda constitutcional nos dez anos seguintes.

Mugabe foi recebido na Rodésia como um herói. E a maioria shona, à qual pertence, garantiu-lhe a vitória nas primeiras eleições, a 4 de Março de 1980, fez esta semana trinta anos. A máscara do líder moderado e conciliador que começara a construir nos acordos de Lancaster House, Mugabe solidificou-a com o convite a Nkomo para fazer parte do seu governo. E até alguns dos antigos adversários brancos foram incluídos na sua equipa. À frente de um país que o Banco Mundial classificava em 1980 como «mais industrializado do que a maioria em África, com uma base de produção diversificada, uma infra-estrutura desenvolvida e um sector financeiro relativamente sofisticado», Mugabe empenhou-se em construir escolas e hospitais.


Mas o lado mais sinistro do líder do Zimbawe iria emergir dois anos depois.  Foi nessa altura que a relação entre Mugabe e Nkomo se degradou de tal forma que o primeiro-ministro expulsou do governo o antigo rival. Começou então a perseguição a todos os que se lhe opusessem. A minoria ndebele foi acusada de conspirar contra o chefe do executivo e, entre 1982 e 1985, o exército esmagou qualquer tentativa de resistência nas províncias de Matebelelândia e Midlands, com os assassínios em massa a multiplicarem-se. O mesmo homem que enviou a 5.ª Brigada para eliminar as tribos ndebele iria reconhecer-se arrependido do massacre em 1999, no funeral de Nkomo.


Depois de eliminar a oposição, Mugabe reforçou ainda mais o seu poder em 1987 ao abolir a função de primeiro-ministro e tornar-se presidente executivo do Zimbabwe, tendo sido reeleito em 1990, 1996, 2002 e 2008, com uma votação recorde de 92,7 por cento em 1996. Foi na década de 1990 que o presidente tentou fazer do Zimbabwe um dos destinos turísticos de África. E o país tem tudo para atrair os visitantes, a começar pelas cataratas de Vitória, mas também o Grande Zimbabwe – as ruínas do antigo centro de poder de um antigo reino shona que inspirou o nome pós-colonial da Rodésia do Sul.

Mas se os primeiros tempos de governação de Mugabe foram de optimismo, a progressiva degradação da situação económica do Zimbabwe nos anos 1990 levou ao aumento do descontentamento. A propriedade dos fazendeiros brancos estava garantida pela Constituição, segundo os Acordos de Lancaster House. Nas zonas rurais, no ano 2000 os brancos ainda detinham trinta por cento das terras. Incapaz de modernizar a economia, Mugabe viu fracassarem os esforços para abrir o Zimbabwe aos mercados internacionais.

E os esforços realizados com o apoio do Fundo Monetário Internacional resultaram no aumento descontrolado da inflação, que chegou a atingir os 231 milhões por cento em 2008 e obrigou as autoridades a retirarem o dólar zimbabwense de circulação, trocando-o antes pelo rand sul-africano ou pelo dólar norte-americano. Há dois anos, uma garrafa de meio litro de água custava na capital, Harare, 1 900 000 000 000 dólares zimbabwenses (uns impressionantes 19 dólares americanos)...

No plano internacional, o Zimbabwe de Mugabe surgia cada vez mais isolado. A dependência em relação à África do Sul ia crescendo à medida que o milénio se aproximava do fim e o país ia perdendo peso na Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC). Encurralado, Mugabe decide jogar uma nova carta e apoiar as invasões violentas de fazendas que eram propriedade de brancos por um movimento que se dizia constituído por antigos combatentes da guerra de libertação.

Os resultados foram desastrosos, como explicava a revista New Yorker num perfil de Mugabe publicado em 2008. Das 45 mil fazendas de proprietários brancos em 2000 só cerca de quatrocentas continuam a produzir. Os invasores mataram uma dúzia de fazendeiros e muitos outros fugiram para escapar à morte. Três milhões de zimbabwenses, entre negros e brancos,  encontraram refúgio na África do Sul e centenas de fazendeiros instalaram-se em Moçambique. Com esta fuga maciça, a comunidade branca ficou ainda mais reduzida, não chegando actualmente a um por cento da população.

Muitas vezes acusado pela comunidade internacional de manipular os resultados eleitorais, a verdade é que Mugabe sempre venceu os adversários com margens confortáveis. Em 2002, o presidente derrotou Morgan Tsvangirai, do Movimento para a Mudança Democrática (MDC). Os dois homens voltaram a enfrentar-se em 2008, quando o partido de Tsvangirai venceu. Um resultado que desagradou à ZANU-PF (resultado da fusão entre a ZANU e a ZAPU), que decidiu lançar uma campanha de repressão contra os opositores.

Mas depois de agressões aos adversários – o próprio Tsvangirai apareceu com a cabeça partida – e das prisões de vários jornalistas que tentavam cobrir o período pós-eleitoral, Mugabe viu-se obrigado a negociar. Um processo marcado por avanços e recuos terminou com a formação de um governo de união ZANU-MDC, que se mantém em funções.

O pária internacional, cuja presença em Lisboa na cimeira União Europeia-África de 2008 gerou polémica e protestos por parte do primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, que recusou participar no encontro, parece assim apostado em mostrar uma máscara mais conciliadora. Mas o velho déspota desponta por momentos. No ano passado, comemorou o seu 85.o aniversário com uma festa sumptuosa – duas mil garrafas de champanhe, oito mil quilos de lagosta, três mil patos, oito mil caixas de chocolate, quinhentas garrafas de whisky e um bolo com 85 quilos. Tudo isto num país que já foi o celeiro da África Austral mas onde hoje mais de metade dos habitantes só consegue alimentar-se graças à ajuda internacional...

Este ano Mugabe prometeu repetir o feito. As festividades estavam previstas durar toda a noite de 26 para 27 de Fevereiro, num momento em que os professores estão em greve por falta de pagamento e o desemprego anda pelos 95 por cento. Mas Mugabe continua cego a tudo isso e decidido a continuar no poder, provavelmente até à morte.

Presença portuguesa desde o século XVI

No início do ano 2000 eram ainda cerca de 2300 os portugueses que viviam no Zimbabwe. Muitos trabalhavam como comerciantes, outros como fazendeiros. Mas a reforma agrária imposta pelo regime de Robert Mugabe levou grande parte a fugir para escapar às expropriações forçadas e à violência de que os proprietários brancos passaram a ser alvo. Austrália, África do Sul ou mesmo Portugal foram alguns dos destinos escolhidos. Hoje são cerca de 1500 os que resistem, mas muitos estão a pensar regressar a Portugal nos próximos anos, caso a situação no Zimbabwe não melhore.

Estes são os herdeiros dos primeiros portugueses a chegar ao império do Monomotapa, cujo centro se situava nas ruínas do Grande Zimbabwe, no século XVI. Desde os tempos de Vasco da Gama que os exploradores tinham informação de que na região onde hoje fica o Zimbabwe e parte de Moçambique haveria grandes minas de ouro. Tais informações acabariam por ser confirmadas por um explorador, Sancho de Tovar. Em 1607, os portugueses conseguiram mesmo que o monarca de Monomotapa lhes concedesse a exploração do subsolo da área que, no entanto, começava a entrar em declínio.

Mais recentemente, o Zimbabwe causou polémica em Portugal. A presença de Robert Mugabe na cimeira União Europeia-África, que se realizou em Lisboa durante a presidência portuguesa da UE em 2008, foi criticada por vários chefes de estado e de governo europeus. O britânico Gordon Brown recusou-se a participar no encontro para não se cruzar com Mugabe. Mais tarde, contudo, o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Luís Amado, veio a público dizer que «valeu a pena» ter convidado Mugabe para a cimeira.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt