Tremor, o melhor festival do mundo que é preciso descobrir nos Açores

Ponta Delgada foi o epicentro, mas as ondas de choque espalharam-se pela ilha num diálogo entre natureza e cultura em dezenas de concertos, residências e atuações-surpresa.
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"Bem, isto foi totalmente inesperado", afirmou uma turista americana, ao dar de caras com a performance do duo Tír na Gnod, que neste ano tiveram a seu cargo as atuações do Tremor Todo-o-Terreno. As palavras da desorientada visitante resumem na perfeição o que é este Tremor, que desde há cinco anos colocou a ilha de São Miguel no mapa dos festivais europeus dedicados ao microcosmos das franjas da música e cultura mais alternativas.

A iniciativa Todo-o-Terreno, por exemplo, propõe ao público fazer uma caminhada, ao som de uma composição musical (descarregada no telemóvel e ouvida de forma individual nos fones de cada um) desenvolvida em residência na ilha por Paddy Shine e Marlene Ribeiro, que no final do passeio lá estavam, ao vivo, para continuar a performance, debaixo da bonita cascata do Salto do Cabrito. O responsável pela escolha do percurso foi Diogo Caetano, presidente da associação ambiental Amigos dos Açores, que desde o ano passado colabora com a organização do festival na elaboração destes passeios Todo-o-Terreno. "É uma iniciativa que permite descobrir a riqueza natural da ilha sob uma nova perspetiva", refere o guia, também ele ainda surpreendido com o efeito que a indecifrável sonoridade (e visual) dos Tír na Gnod provocaram naquela clareira, onde habitualmente apenas se ouve o canto das aves e o som da água corrente. "Pensei que vinha ver concertos e acabo a atravessar a selva, tipo Indiana Jones", comentava, divertido, no regresso aos autocarros, Erik Palm, um sueco radicado em Los Angeles, nos Estados Unidos.

É importante referir que nenhum dos participantes sabia ao que ia, pois o elemento-surpresa é uma das traves mestras do Tremor, tal como a estreita ligação à ilha, feita através da paisagem. Um dos melhores exemplos disso é o Tremor na Estufa, um conjunto de concertos-surpresa a cada dia realizado num local diferente. O sítio só é revelado no próprio dia e os artistas convidados só são conhecidos no momento da atuação, como aconteceu na quarta à noite, com a atuação do guitarrista Tó Trips (Dead Combo) e do baterista João Doce (Wraygunn) no Parque Terra Nostra, nas Furnas, com a maior parte do público a assistir ao concerto de molho nas quentes águas vulcânicas do lago do jardim, onde os músicos também terminariam. "Nunca tinha assistido a um concerto assim", confessava no final uma rapariga inglesa, também ela, a exemplo de Frank, surpreendida com os cenários onde se realizam os concertos. "É um festival com todos os cartões postais da ilha, mas apresentados sob um filtro artístico e experimental", explica António Pedro Lopes, um dos programadores do Tremor, que teve início na terça-feira, com a exibição do vídeo Levantados do Chão, da autoria do artista visual Daniel Blaufuks e protagonizado pela Banda Lira Sete Cidades, a quem coube o espetáculo de abertura do festival, perante um quase lotado Teatro Micaelense.

Na noite, mas no Auditório Luís de Camões, foi também com a casa cheia que os Três Tristes Tigres se apresentaram, no que parece ser uma das principais características deste festival, com casas sempre cheias, de gente e de entusiasmo, para receber os artistas. Assim aconteceu novamente no restaurante Solar da Graça, cheio como um ovo para ouvir o queer rap do artista americano Mykki Blanco, ou com holandeses Altin Gün e The Mauskovic Dance Band, duas das bandas mais aplaudidas pelo público, que atuaram, respetivamente, na quarta e na quinta-feira, no Arco 8, o bar--galeria onde todas as noites o festival terminava noite adentro, juntando por lá público e músicos. "Em nenhum festival do mundo partilhas a casa de banho com o tipo que acabaste de ver tocar", afirmava Nelson Silva, depois de ter "encurralado na casa de banho" do Arco 8 o baixista dos Altin Gün. "Vi-os pela primeira vez em Serralves e fiquei a adorar a música deles, tive de lhe dizer", confessa Nélson, ele próprio músico - é teclista nos Holy Nothing. É a primeira vez que vem ao Tremor e também aos Açores. Viajou com uns amigos, mas já encontrou muitos mais: "Na primeira noite parecia que estava no Porto ou em Lisboa." De um total de 1500 bilhetes postos à venda (e esgotados), mais de metade foram para espectadores vindos de fora da ilha, entre eles muitos estrangeiros, que vêm atraídos pelo "exotismo de um festival tão alternativo, realizado numa pequena ilha no meio do atlântico", como o descreve Gunseli Yalcinkaya, uma jornalista da Crack Magazine, publicação mensal inglesa dedicada à música e cultura independente. Nesse aspeto, pode mesmo afirmar-se que, passados cinco anos desde a primeira edição, o Tremor é uma aposta ganha, no modo como tem conseguido promover a ilha, sempre numa perspetiva de descoberta mútua - "entre os que cá estão e os que vêm de fora".

Daí também a aposta em envolver a comunidade, através de residências artísticas, como a que resultou na exposição O Narcisismo das Pequenas Diferenças, da fotógrafa Pauliana Valente Pimentel, que passou uma temporada na ilha a fotografar a juventude de São Miguel. "Há duas realidades completamente opostas na ilha, resultantes das classes sociais e que, à exceção da escola, raramente se cruzam no dia-a-dia", refere a artista, cuja preocupação "não foi tanto sublinhar as diferenças", mas antes "captar a beleza destes miúdos", muitos deles pela primeira vez juntos num mesmo espaço, como aconteceu aquando da inauguração da exposição, na galeria Fonseca Macedo.

Outra parceria já clássica do Tremor é que desde há três é feita com a Escola de Música de Rabo de Peixe, possibilitando aos alunos o contacto com artistas convidados pelo festival. Neste ano foi O Gringo Sou Eu, um projeto de Frankão, um músico brasileiro radicado no Porto e membro de bandas como Samba sem Fronteiras ou HHY & The Macumbas, o escolhido para criar um concerto de raiz com a escola, que abriu o penúltimo dia de festival, decorrido na totalidade na Ribeira Grande, com espetáculos alternados entre o clássico Teatro Ribeiragrandense e o moderno Arquipélago, Centro de Artes Contemporâneas. O concerto misturou jazz e hip-hop, teve como ponto alto a homenagem a Sandro G, o famoso rapper de Rabo de Peixe, que nos anos 90 tornou famosa, através da música, uma freguesia até aí apenas conhecida pela pobreza.

No final, a festa prolongou-se para a rua, onde a jovem orquestra se transmutou num bloco de samba e batucada, seguido por uma pequena multidão a dançar, num dos momentos mais comoventes da edição deste ano. Ontem, sábado, o Tremor regressaria de novo a Ponta Delgada, para aquele que, por tradição, é o seu dia mais forte, como se comprovou pela sucessão de concertos, de nomes como o dos espanhóis Zulu Zulu, a americana Mal Devisa, os dinamarqueses Liima, o tuaregue Mdou Moctar, os portugueses Dead Combo ou os brasileiros Boogarins, que se multiplicaram por lojas, bares, restaurantes, igrejas e diversas salas de espetáculos. "É o melhor festival do mundo", ouviu-se novamente e por mais do que uma vez, pelas ruas de Ponta Delgada. Já é portanto tempo de o mundo também o descobrir.

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