Travesti-me e instalou-se a confusão

Aquela não tinha sido a minha primeira separação. Eu tinha-me debatido com os ciúmes e a insegurança antes, quando um antigo namorado seguiu com a vida dele. Mas, desta vez, eu estava a começar a questionar-me de formas que não esperava. Desta vez, os ciúmes eram em relação a algo mais
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Eu tinha pedido ao meu ex-namorado se podia passar a noite na casa que ele possuía na sua cidade natal, a caminho do local onde iria encontrar-me com amigos para uma viagem de campismo. Quando percebeu que iria chegar tarde disse-me para esperar por ele em casa dos seus pais. Não lhe fiz perguntas sobre a sua nova namorada e ele não tocou no assunto.

Alguns meses antes, a sua cunhada tinha-me dito que ele estava a sair com alguém, mas naquela altura eu não sabia nada sobre ela.

Quando cheguei a casa dos pais do meu antigo namorado, o seu pai abriu a porta e gritou: "Delace!", antes de me esmagar contra o peito num abraço apertado. "Ver-te é uma alegria para estes olhos cansados."

Levando-me para a sala, gritou para a mulher: "Querida, olha quem ela é."

Quando o filho deles e eu estávamos juntos, acho que eles esperavam que nós nos casássemos, tivéssemos filhos e assentássemos numa vida tradicional. Mas as coisas não acabaram assim.

Quando nos sentámos, ele começou a falar sobre a nova namorada do filho enquanto eu sorria corajosamente, sem dar a entender que não sabia nada sobre ela. Mas quando ele se lhe referiu pelo nome, eu percebi que sabia exatamente quem ela era.

"Sabes alguma coisa sobre o passado dela?", perguntou o pai.

Engoli em seco, comecei a falar e, de seguida, abanei a cabeça.

Recordei a primeira vez que a tinha visto. O meu namorado e eu estávamos a tomar uma bebida com um casal conhecido, na sua sala de estar minúscula. Eles estavam a falar-nos sobre uma amiga que estava a pensar em comprar uma casa ali perto.

"Vocês têm de a conhecer", disse Bill. "Ela é fantástica, tão glamorosa. É uma ex-modelo e tudo. Deixem-me mostrar-vos."

Ele correu para o outro quarto e voltou com uma pilha de fotografias.

"Vejam," disse Bill, encaixando-se ao meu lado no sofá e tirando uma das fotografias. O meu namorado chegou-se mais para perto para ver. "Esta foi tirada na nossa última festa de Halloween."

Ela era alta e imponente, com olhos amendoados e longos cabelos escuros, vestida de cigana em seda verde, elevando-se sobre os homens que a rodeavam. Ela era, de facto, fabulosa. Sorria para a câmara, com a cabeça levemente inclinada.

Eu peguei na fotografia, olhei mais de perto e perguntei: "Ela sempre foi mulher?"

Bill olhou para mim surpreendido. "Como é que sabias?"

Eu posso ter adivinhado corretamente aquele detalhe sobre a sua história, mas não sabia o suficiente sobre ela para satisfazer a curiosidade que me roía as entranhas, agora que ela era a nova namorada do meu ex.

Depois de voltar da minha viagem de campismo percorri a internet à procura de tudo o que conseguisse encontrar sobre ela. Ela era incrivelmente elegante, uma daquelas mulheres que podem entrar numa loja, sair com uma braçada de roupas e joias que eu teria ignorado e usá-las juntas em combinações sofisticadas e elegantes. Ela era bonita e dona de um estilo que eu não possuía. Senti apertar -.se o nó que tinha no estômago.

Aquela não tinha sido a minha primeira separação. Eu tinha-me debatido com os ciúmes e a insegurança antes, quando um antigo namorado seguiu com a vida dele. Mas, desta vez, eu estava a começar a questionar-me de formas que não esperava. Desta vez, os ciúmes eram em relação a algo mais.

Três meses depois dessa visita ao meu ex-namorado e à sua família, quando eu estava entre empregos e lugares para morar, perguntei-lhe se poderia ficar novamente em casa dele por algumas noites. Quando lá cheguei, as coisas dela estavam por toda a parte.

No quarto de hóspedes, o roupeiro estava por conta dos vestidos dela: Dolce & Gabbana, Armani e costureiros cujo nome eu nem sequer reconhecia nos porta-fatos. Nem me atrevi a tocar-lhes com medo de os estragar de alguma forma.

Fui invadida por uma onda de perturbação enquanto me perguntava: Como é que ele pôde escolher alguém tão diferente de mim? Eu estava preparada para ele namorar outras pessoas, mas não estava preparada para ela.

Eu não queria que a história dela tivesse importância. Não era importante para o meu ex-namorado. Mas ali, no roupeiro dela, não podia negar o facto de que, para mim, o era. E o motivo era o seguinte: eu achava que ela sentia um grau de certeza na sua identidade como mulher que eu não sentia.

Eu estava a ser arrogante, admito. Não tomei em consideração que estava a ver apenas um aspeto de quem ela era. Não pensei no estigma que deve ter sofrido ou na dor por que deve ter passado apenas para ser ela própria.

Em vez disso, rodeada pelos tipos de vestidos femininos com os quais me tinha sentido tão pouco confortável, eu estava com inveja da mulher que os sabia usar tão bem. Tudo o que eu conseguia pensar era: é isso que significa ser uma mulher? Porque se for eu não estou lá nem perto. Não pinto as unhas, não uso acessórios nem sequer uso vestidos.

Em criança, eu preferia roupas e brinquedos de rapaz e, embora não sentisse que estava no corpo errado, queria ser um rapaz. Quando tinha 7 ou 8 anos, ao ver uma comédia sobre alguém que está a ser involuntariamente preparado para uma operação de mudança de sexo, perguntei aos meus pais o que era isso de mudar de sexo. Depois de eles me terem explicado perguntei-lhes se poderia fazer uma operação dessas quando crescesse.

Já mais velha, o meu guarda-roupa estava cheio de calças de ganga, camisas de flanela e meias de desporto, e, em vez de sonhar ser a rapariga do James Bond, eu sonhava ser o próprio James Bond. Via-me maior e mais dura do que era na realidade. Na verdade não queria ser um rapaz, mas não me sentia verdadeiramente uma rapariga.

Na adolescência continuava a não me sentir feminina, mas comecei a gostar da sensação de os homens me darem atenção. Assim, tentei descobrir a maneira de me parecer mais com uma mulher e de agir como tal.

Os meus modelos eram as mulheres com grandes cabelos, grandes seios e botas altas até à coxa dos vídeos de heavy metal. E porque o que eu queria era a atenção dos homens, confundia o ser sexy com ser feminina, levando a opções de moda desastrosas que envolviam calças de ganga, lingerie e blazers. Recebia a atenção por que ansiava, mas nunca me senti totalmente confortável na minha pele.

Cerca de um mês antes de o meu namorado e eu acabarmos a nossa relação decidi tentar expressar o meu género de forma diferente durante uma noite.

Estávamos a viver em cidades diferentes, era noite de Halloween e eu tinha sido convidada para duas ou três festas. A última coisa que me apetecia era entrar na competição de quem seria a bruxa mais sexy ou algo igualmente tolo, mas, em seguida, ocorreu-me que não tinha necessidade de competir; eu poderia ir de travesti. Não como um travesti de uma rapariga gira com um bigode pintado a lápis. Mais no género de ver se conseguiria passar por um homem.

Durante toda a noite, com o peito enfaixado, um bigode e uma mosca cuidadosamente feitos e um gorro de malha, fiquei emocionada ao descobrir que conseguia passar por um homem.

Os homens eram mais facilmente enganados do que as mulheres, mas mesmo quando as mulheres não se deixavam enganar, elas olhavam para mim de forma diferente, como se eu não representasse uma ameaça. E quando os homens olhavam para mim, eles não estavam a avaliar os seus apetites. Durante algumas horas, as regras foram diferentes.

Uma amiga até comentou sobre a convincente masculinidade dos meus maneirismos: "Uau!", exclamou. "Até dominas os gestos e tudo."

Mas eu não tinha mudado nada nos meus maneirismos. E, nesse momento, senti que outras pessoas estavam a ver o que eu tinha visto em mim mesma: que o meu sentimento interior de androginia se refletia na maneira como eu me comportava no papel de homem.

Não mencionei o meu traje ao meu namorado até ao dia seguinte, quando lhe mandei fotografias por e-mail. "O que é que achas?", perguntei-lhe nessa noite ao telefone. "É uma loucura, não é? Pareço mesmo um homem."

"Sim, muito estranho", respondeu ele.

Eu ri-me. Ele não.

"Não sei porque é que achas que isto tem piada", disse ele. "É óbvio nas fotografias que tu não estás a brincar. Não sei o que estás a fazer, mas isto não é normal."

Eu queria falar-lhe do alívio que tinha sido para mim parar de me esforçar tanto para ser feminina ou sexy. Mas, depois do comentário dele, nada mais havia a dizer.

Naquele dia, em casa do meu ex--namorado, naquele roupeiro, cercada pelos vestidos da sua nova namorada, perguntei-me se ele já andaria com ela naquela altura e se o facto de eu me ter travestido o irritou por ter sido subitamente confrontado com muitas fronteiras difusas.

Ou será que talvez o contraste entre uma mulher com uma relação incerta com a feminilidade e outra que a abraçava o esclareceu sobre o que ele próprio queria?

Ela tinha desafiado tanto as convenções como a biologia para refletir a verdade de quem era na realidade. Eu tinha andado aos tropeções na periferia da feminilidade, num jogo para obter amor e atenção, a tentar encontrar um vestido que me assentasse bem.

No final, não é de admirar que ela tenha feito a transição melhor do que eu.

Delacey Skinner escreve e é diretora de publicidade de campanhas de causas progressistas e políticas em Washington.

Exclusivo DN/The New York Times

É de amor que se fala nesta coluna, a mais lida do the New York Times. histórias verdadeiras, contadas pelos leitores. Leia-as no DN aos domingos

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