Trauma

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A sensação é estranha. Como se o fogo ainda queimasse, como se as chamas se aproximassem a partir do fundo do vale. Porém, não há fogo. As últimas chamas crepitaram em outubro de 2017 e devastaram a serra do Açor. Ao meu redor, a terra nua, com bosques de escassos pinheiros que ainda não foram cortados. Seus troncos negros fazem sombra chinesa à distância. Parecem grandes fósforos plantados no chão duro. Ao longe, a neve polvilha de branco os picos da serra da Estrela, destacando-se na cor dominante de castanho, bege e preto. Abaixo, algumas casas. Ali morreram pessoas nos incêndios de 2017, ali também. Um casal nessa aldeia teve tempo de levar os seus dois filhos para a escola, transformada em refúgio. Eles voltaram para casa, procurando roupas. Nunca mais foram vistos. Procuro na minha memória se já ouvi sobre a história. Sim, não, esta história, outra. No frio que envolve a serra, tenho dificuldade em não achar de grande beleza a paisagem de desolação. O vale é magnífico. Sem ter os cenários dos Alpes ou dos Pirenéus, a modéstia desta montanha torna-a muito humana. Mas naquele dia é o diabo que dança ainda entre os pinheiros queimados. Nestes vales outrora risonhos, todos os moradores falam do inferno que os rodeou. O trauma é imenso. Seis meses depois, o homem que conheci numa aldeia explica-me que só teve tempo para ir até o café refugiar-se. O inferno levou tudo o que era dele, e tudo o que era dos outros. A emoção do senhor é tão palpável que me dá a impressão de que ele vai cair sobre si próprio. É no mesmo café de onde a vista é de tirar o fôlego sobre o que resta da sua quinta - as paredes de xisto da casa agrícola, e mais nada - que o homem decidiu começar do zero. Não desistir, começar de novo, disse tristemente. Ele recebeu os cinco mil euros da indemnização a que tinha direito. Mas desde então o preço das mudas de árvores e equipamentos agrícolas triplicou ou quadruplicou. Toda a gente quer, os stocks estão esgotados e a especulação instalou-se. Ele nunca poderá repetir o que fez na sua quinta. O homem sacode-se para afastar a tristeza dos ombros. Eu vou recomeçar, diz, de queixo novamente tremido.

Na serra, bem acima da aldeia, um pequeno exército equipado com pás é espalhado na encosta castanho-escura. Um exército heterogéneo de escuteiros, fácil de reconhecer com as suas fardas, famílias com crianças, grupos de jovens, mulheres solteiras, homens e mulheres dos correios reconhecíveis pela camisa que diz "CTT", sapadores florestais e os seus coletes verde-amarelos. Muitos desses voluntários vêm da cidade, de Lisboa e seus arredores. E a maioria nunca usou uma ferramenta de campo. Os sapadores prepararam o solo e marcam os sítios onde cavar. Naquele dia, são os sobreiros que têm de ser plantados. Melhor dizendo, o que será num futuro longínquo um sobreiro. É preciso uma boa dose de imaginação para ver nestes 15 centímetros de haste com algumas folhas a árvore imponente e majestosa dotada de uma casca muito original para se defender contra incêndios. A terra é dura e crivada de seixos. É preciso cavar fundo, colocar a planta pequena, rodeá-la de grãos de fertilizante, tapar o buraco, fazer um monte e uma vala. Depois, avançar três metros e começar de novo. O trabalho é exaustivo. Após um intervalo para almoço, os efetivos reduzem-se. Mas os voluntários urbanos são unânimes sobre a necessidade de participar, de mostrar determinação, vontade de reconstruir, reparar. Uma necessidade de fazer parte da catarse, depois de uma guerra, que mobiliza os braços e as mentes.

O trauma é integrado no inconsciente daquelas pessoas que não viveram presencialmente a tragédia de 2017, mas que a sentiram como se as tivesse afetado diretamente. Além disso, muitos querem mostrar como a natureza é bela e quão importante é ter algo a transmitir às gerações futuras. Um rico e belo Portugal, além deste deserto verde tantas vezes descrito. Os desajeitados voluntários da reflorestação da serra de Açor, perto de Oliveira do Hospital, sentiram o trauma dos incêndios de 2017 e partilharam o sentimento durante o tempo em que estiveram ali, a plantar três hectares de árvores bebés. Os bebés do "nunca mais", testemunhos da sua motivação e determinação. Três hectares simbólicos? Sim, sem dúvida. Mas também uma tomada de consciência fabulosa. Um pequeno pedaço de esperança para o futuro. É nada, mas é muito.

A jornalista acompanhou uma ação de reflorestamento da ONG Quercus e dos CTT.

Correspondente da Radio France Internationale

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