Tratar sem lesar. O poder da cirurgia robótica está na mão experiente do médico 

Saber conduzir não chega para guiar um F1, mas Kris Maes é um piloto experiente... do Da Vinci Xi, o robô cirurgião que se estreou em Portugal em 2010, no Hospital da Luz. O mais experiente cirurgião robótico do país conta como trocou a Bélgica por Lisboa, e guia-nos pelas vantagens da tecnologia aplicada à saúde, enquanto remove um tumor intrarrenal quase sem deixar sequelas no doente.
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"Agora vou ter de interromper. Quando clampar tenho os minutos contados para abrir o rim, tirar o tumor e voltar a fechar, antes de tirar isto e deixar que o sangue volte a fluir" - aponta com os instrumentos que vai movendo dentro da barriga do paciente uma abraçadeira vermelha e outra azul, que fixou ao redor da veia e da artéria renais. "Tenho de ter a certeza de que ficou tudo bem, porque depois de desclampar não posso voltar a cortar o abastecimento de sangue ou corremos o risco de perder o rim."

Durante 15 minutos, a comunicação de Kris Maes está limitada à equipa que o assiste dentro da sala assética. Bruno é o segundo cirurgião, está também a anestesista, e Luís, o enfermeiro chefe, tem com ele a sua formanda; há ainda a enfermeira instrumentista e uma assistente. Os seis seguem atentamente cada movimento dos braços robóticos, ao vivo e nos ecrãs, concentrados em volta do paciente para cumprir ao segundo qualquer ordem do maestro, que conduz a cirurgia do outro lado do vidro, numa complexa consola robótica de ecrã 3D aumentado, com cliques ritmados que se traduzem em movimentos do que parece um enorme caranguejo branco a pairar sobre o doente. Nessa sala contígua à da cirurgia, fica o centro de operações do Da Vinci Xi, a partir do qual Kris Maes controla os quatro braços articulados - um para a câmara, três que alternam entre bisturi, aspirador, agulha e linha para a costura, aplicador de cola de fibrina, manipulador de clamps, etc. - que se movem dentro da barriga do paciente.

As extremidades respondem ao toque preciso dos dedos do cirurgião nos manípulos que orientam os instrumentos, alternando entre braços robóticos com os pés descalços sobre os pedais, para escolher os instrumentos necessários a cada momento. A work station inclui um troley com software, que se assemelha a uma consola imersiva de última geração, com surround e rádio integrado para comunicar com a equipa.

Esta é a fase crucial da cirurgia de remoção de um tumor intrarrenal. Já lá vai quase hora e meia de trabalho, mas se tudo correr bem daí a 30 minutos o doente poderá seguir para o recobro, a despertar da anestesia e apenas com três minúsculos furos na barriga a comprovar a cirurgia a que terá acabado de ser submetido. Continuará a ter dois rins funcionais. E o tumor será história a caminho do laboratório para análise.

Quando nos recebe, já passados pela esterilização e vestidos a rigor, na sala de cirurgia robótica de urologia do Hospital da Luz, Kris Maes traz um sorriso tímido, que se vai abrindo conforme a cirurgia progride a bom ritmo, enquanto nos legenda os procedimentos que vai cumprindo e nos conta a sua história. O doente está anestesiado e a equipa, com quem trabalha há já perto de uma década, ultima os acessos sempre em comunicação com o cirurgião que não desvia o olhar e vai ajustando detalhes com precisão. Traduz o que vamos vendo num português fluente, que denuncia a sua Bélgica natal nos "x" que pronuncia no lugar dos "c" e dos "g". "A barriga está assim inchada porque para os braços robóticos poderem mexer-se lá dentro é preciso insuflar ar com uma seringa, através do umbigo, para criar espaço."

Médico urologista desde 2000 e tendo começado a especializar-se em cirurgia robótica seis anos depois, Kris Maes já vai na quarta geração de robôs Da Vinci Xi e foi o primeiro a fazer cirurgia robótica em Portugal. Veio a 1 de abril de 2010 estrear o primeiro robô do país. "Eu tinha experiência, o Hospital da Luz sabia, e quando decidiu comprar o robô a Isabel Vaz (CEO da Luz Saúde) convidou-me a vir para formar os médicos. Achou que não era boa ideia comprar "um avião sem piloto"." Não se cansa de repetir que o robô precisa de quem o saiba manusear, que a formação é essencial na cirurgia robótica e que mesmo com as imensas vantagens que esta traz, na dúvida, sem garantias de experiência, continua a ser melhor uma cirurgia clássica.

"A Isabel Vaz foi muito inteligente ao dizer que só queria o robô se tivesse alguém com experiência para juntar-se ao projeto. Eu vim para dar formação às equipas, mas passados dois anos ela disse que o melhor era eu ficar." Não foi fácil para Kris decidir mudar a sua vida toda, trocar a Bélgica por Portugal, enfrentar a desconfiança de alguns que não entendiam o que vinha fazer. "O grande susto foi quando me disseram que tinha de fazer o exame de português na Ordem dos Médicos, para poder exercer aqui", recorda a rir. "Eu dava as formações em inglês e só sabia dizer "bem vindos" e "obrigado", mas quando assinei contrato tinha de aprender, então contratei uma professora de português e pus os miúdos na escola internacional. Mas ainda nem sei bem como consegui passar nessa altura... agora já estou melhor", diz, deixando escapar um ponto de interrogação na entoação.

Não há música clássica a tocar nem drama a avolumar-se. Os clichés banalizados pelas séries estão tão presentes na sala quanto o aspeto de hospital nos corredores. A Luz é um espaço acolhedor e está arranjada com cuidado, quase parecendo um hotel, para que os doentes se sintam o melhor possível e os cuidados prestados sejam de nível premium, com absoluto rigor hospitalar. E a sala de cirurgia não é exceção. Kris mostra como o robô funciona, permite-me a sensação de ter a cabeça imersa entre o fígado e o rim em tratamento, aponta os ecrãs de alta definição espalhados acima do vidro que nos separa do paciente. "Esta sala é ideal para ensinar e é uma das mais bonitas do mundo! Já mo disseram num congresso internacional que recebemos aqui", orgulha-se, dizendo-me já com a cabeça mergulhada na working station para começar a cirurgia: "Pode falar comigo à vontade. Se for momento mais sério, eu digo."

Vai movendo os braços do Da Vinci Xi com todo o cuidado, a cada clique corresponde uma precisa incisão na cápsula adiposa que envolve e protege o rim de pancadas e traumas, seguida do manuseamento cuidado da pinça que vai afastando essa "concha", milímetro a milímetro, de forma que possa depois ser devolvida ao lugar. Em simultâneo, vai-me contando que a robótica mudou completamente o padrão da cirurgia. "Antes brincávamos a dizer que quanto maior a incisão, melhor o cirurgião. Hoje é o inverso. Eu sou um pioneiro da cirurgia robótica, sou um early adopter porque acreditei que isto ia ser o futuro. Mas há late adopters e ainda há muitos never adopters, mas o mundo evoluiu e a cada dia que passa conseguimos fazer isto com mais qualidade."

A qualidade de que fala é sobretudo para os doentes: os robôs têm sido fundamentais para pôr o doente no centro da saúde, em vez da doença, tratando os problemas sem descurar a sua qualidade de vida. E na área em que Kris trabalha, isso é uma vantagem inequívoca. "Este doente tem um tumor intrarrenal, então o cirurgião urologista diz que tem de tirar o rim. Mas a cirurgia robótica permite tirar o tumor e preservar o órgão, o que é uma enorme mais-valia A dissecção também é muito melhor porque não tem manipulação, a visibilidade é espetacular e chegamos a sítios onde com as mãos simplesmente não era possível."

Dá outro exemplo: o cancro da próstata. "Sobretudo quando estamos a tratar gente nova e em casos de cirurgia radical, que tem os efeitos secundários mais desagradáveis, conseguimos tirar a próstata com muito melhores resultados de preservação da função erétil e sem causar incontinência. O doente fica tratado e não fica incontinente nem impotente, vai ter uma qualidade de vida equivalente a se não tivesse sido operado."

Vai prosseguindo o trabalho enquanto fala e a tempos interrompe o que me conta para se dirigir à equipa: "Parece-me que o tumor está aqui nesta zona, aqui em cima. Não é Bruno?" Volta a dirigir-me o discurso para o alerta que não se cansa de repetir. "Mas tudo isto depende do cirurgião, há quem tenha muito melhores resultados com cirurgia convencional porque não teve formação suficiente em robótica, a curva de aprendizagem conta muito. Se a Boeing lançar um novo avião incrível e os pilotos não forem bem treinados, eu desconfio... prefiro apanhar o avião antigo", exemplifica. Há quem diga que é preciso um mínimo de 500 a mil cirurgias deste tipo para se fazer bem. Kris já soma mais de 3 mil. "Tenho alguma curva de aprendizagem, mas também já faço isto aqui há 13 anos", diz.

Diretor do Serviço de Urologia do Hospital da Luz desde 2016 e coordenador do Centro de Uro-oncologia e do Centro de Cirurgia Robótica e Minimamente Invasiva na mesma unidade desde 2013, Kris Maes está integrado num plano de treino com certificação europeia e já formou mais de dez especialistas. É o único na Península Ibérica a fazê-lo num programa com organização e certificação da União Europeia, a que acrescenta um fellowship program registado na Sociedade Europeia de Urologistas que ali mantém os cirurgiões por seis meses, saindo com um certificado reconhecido em toda a Europa e no Brasil. "A nossa formação é baseada em estudos e em ciência, não tem nada que ver com a formação dada pelas empresas que fornecem o robô, que é muito rápida e limitada, sem garantias de que quando põem o robô num hospital os médicos sabem mesmo trabalhar com ele. Isso preocupa-me, porque os médicos têm a responsabilidade de ser bem formados. Formação e experiência são fundamentais."

Kris faz cirurgia robótica aos rins, próstata, bexiga. Mas no Hospital da Luz há também outras especialidades, que vão da cardiologia à ginecologia, e vão bem além da oncologia. "Cada cirurgião tem a sua área e o robô uma ferramenta para várias disciplinas, mas cada especialista faz só a sua área. Eu não sei operar um intestino", explica. "Mas tendo uma equipa experiente, o robô tem a grande vantagem de ser muito menos traumático para o doente, até menos do que a laparoscopia, porque há muito menos manipulação, menos fricção e nas cirurgias mais complexas tem mais liberdade e segurança. Eu tenho aqui doentes que são referenciados por outros médicos porque é impossível operá-los por via convencional. Porque não é acessível, por exemplo. E de repente essas pessoas têm uma esperança."

"Isto ainda é linfático, sim. Quero isolar melhor aqui antes de ir para baixo. Aqui está a artéria principal, vamos clampar ali, aqui conseguimos, atrás da veia renal (que leva sangue do rim ao coração)." Vai partilhando com a equipa o posicionamento de pinças e laços cirúrgicos e dando conta dos passos seguintes.

Pergunto-lhe como se interessou pela robótica e conta-me que teve a sorte de saber que um hospital vizinho de Louvain, onde se formara, tinha comprado um Da Vinci para cardiocirurgia que acabara por ficar sem uso nessa disciplina e fora recuperado por um urologista de renome. Entre grupos da especialidade e conferências, percebeu que aquele método podia ter potencial e rapidamente ingressou no Hospital de Sint-Blasius, em Dendermonde, para aprender com o mestre. "Eu tinha 35 anos, estava no início da minha carreira como urologista, e estava a perder doentes de laparoscopia porque queriam todos fazer a cirurgia robótica, então isso deu-me ainda mais motivação para procurar formação. Agora aqui há muito interesse dos jovens em aprender, eles fazem fila." Na própria sala onde conversamos está um deles, em processo de escolha da especialidade, que não desvia os olhos do que o cirurgião vai fazendo. Ele só forma um de cada vez, mas é bem provável que aquele jovem médico entre em breve na lista. Kris Maes está também envolvido em pós-graduações e num programa de treino em parceria com o SNS que passa por receber um par de alunos de hospitais públicos por três meses, para conhecer e aprender os passos essenciais. "Não é uma formação completa, é só para perceberem melhor como funciona o robô, as possibilidades que abre. Vai ser integrado na formação regular de urologia e isso é bom, haver esta integração, que hospitais privados sejam incluídos na formação pública. É uma honra termos conseguido obter a idoneidade na formação de cirurgia robótica", diz.

Esta ligação entre público e privado é algo que vê com bons olhos, até pela capacidade de investimento que permite aos privados ter acesso a algumas tecnologias que ainda não estão tão disponíveis ou normalizadas nos hospitais públicos. E até porque, como lembra, os médicos do privado e do público são os mesmos. "Isto é uma coisa caríssima e implica muitos anos de formação a cada médico."

O investimento num Da Vinci Xi, que o Hospital da Luz estreou em Portugal, em 2010, mas que foi chegando à CUF, Fundação Champalimaud, Curry Cabral, Lusíadas e agora ao São João, ascende a cerca de 2 milhões de euros. E o médico de 53 anos está otimista quanto às possibilidades que se abrem. "Os privados começaram mais cedo, mas agora com o segundo hospital público a comprar, a perspetiva de médicos e doentes vai mudar, porque a maioria dos doentes do público nem sabia desta possibilidade e agora sabe-se mais, fala-se mais, os doentes estão mais informados."

Volta à equipa: "Então Bruno, o que achas? Fazemos a eco para localizar antes de abrir?" Depois traduz: "Veja aqui o que conseguimos fazer: eu ponho isto em cima do rim e faço uma ecografia intrarrenal operatória que me permite integrar as imagens e ver exatamente o que está por baixo e onde." O potencial é de facto incrível, a precisão absoluta. Não admira que um cirurgião, mesmo experimentado, ainda se entusiasme com a capacidade que tem nas mãos e a melhoria que a tecnologia permite trazer ao tratar um doente.

O tempo de uma cirurgia robótica será semelhante ao de uma tradicional - aqui leva-se mais tempo no setup, mas depois de cumprido o tratamento não há necessidade de levar mais uma hora a fechar feridas. Mas as vantagens são inegáveis, com a qualidade acrescida para o doente à cabeça. Não apenas por minimizar possíveis efeitos secundários que resultam em perda de funções ou qualidade de vida mas pelo próprio processo de recuperação, múltiplas vezes mais rápido e com risco consideravelmente menor, dado que a manipulação e exposição a infeções é reduzidíssima, acelerando-se brutalmente o processo de cicatrização e recuperação.

"Isto é como um Porsche: fizeram o modelo há muitos anos e desde então só mudam o que pode ficar melhor, mas o essencial da máquina continua a ser igual nas várias gerações." É assim que Kris vê as novas versões do robô cirurgião, o que considera muito positivo: o robô só muda quando é necessário para integrar novas tecnologias. E com os cirurgiões como guias. "Temos hoje na Associação Europeia de Urologia Robótica um grupo que trabalha com a equipa de tecnologia e eles já não mexem em nada sem falar connosco, fazemos um trabalho em conjunto e os cirurgiões participam das decisões."

Neste momento, o que podia melhorar no Da Vinci? "Eu falo muitas vezes de não ter a sensação na ponta dos dedos, como numa cirurgia tradicional, mas a verdade é que já me habituei. Agora as melhorias virão não tanto da forma de funcionar do robô, mas da integração. Por exemplo, com Inteligência Artificial (IA) já é possível que as imagens que o computador saiba onde eu estou a mexer através daquilo que estou a ver; então, se houver um programa que me diga que é melhor não cortar num certo local porque dois milímetros atrás está um vaso... Isto é tecnologia que já existe, mas ainda não está integrada. E seria uma grande mais-valia. Cirurgia robótica assistida pela IA. É para aí que vamos."

Nas possibilidades do 5G, Kris Maes não deposita muita fé, ainda que já se tenha feito algumas experiências de cirurgia à distância, e explica porquê. As razões prendem-se com a latência, que se reduziu consideravelmente com a quinta geração móvel mas ainda não garante movimentos 100% seguros. "A responsabilidade das empresas de telecomunicações seria enorme e não estou a ver que alguma esteja preparada para a assumir", conclui o urologista, "da mesma forma que não vejo um avião sem piloto acontecer nos próximos tempos".

Aponta-me uma bolha cinzenta à superfície do rim: "Isto aqui não é o tumor, é um quisto banal. Podíamos nem mexer, que é inofensivo, mas já que aqui estamos vamos furar." O esguicho é o único momento impressionante de duas horas de cirurgia. Kris ri-se, "é só uma bolha de água". Pode ser, mas não deixa de ser uma imagem repugnante. Ri-se de novo. Depois faz uma última vistoria e avisa que vai entrar em ação.

"Vamos limpar!" Está agora em foco total, a extrair o tumor da parte superior do rim. "Cá está, é esta bolinha; está totalmente encapsulado." Não há vestígios além da massa do tamanho de um berlinde grande, aspirada para o exterior e depositada numa bandeja para seguir para análise. Confirmada a extração, é aplicada a cola de fibrina - uma solução previamente fabricada a partir do sangue do próprio doente que cria uma espécie de crosta artificial instantânea para cicatrização rápida do órgão. É o momento crucial: os clamps são retirados e não há hemorragia. A equipa respira fundo.

Agora, os tentáculos movem-se rapidamente, conforme Kris vai costurando os pontos, voltando a encerrar a camada de gordura que serve de proteção ao rim. Os braços robóticos retraem-se e enfim a equipa sai de cena, à exceção da anestesista e uma assistente que vigiam o despertar do paciente até às primeiras palavras, em poucos minutos. Não há vestígio de sangue.

O sorriso de Kris e da equipa quando se juntam à volta do robô para a fotografia mostra bem o estado de espírito geral: com o comandante experiente ao leme, o Da Vinci cumpriu bem a sua missão.

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