Transgénicos e orgulhosos
Num dia de Agosto de 2007 José Maria Rasquilha recebeu um telefonema. Do outro lado da linha o comandante regional da GNR avisava-o de que a sua Herdade da Godinha em Campo Maior, no Alentejo, podia ser alvo do ataque de um grupo de activistas que acabara de destruir um campo de milho transgénico em Silves, no Algarve. José Maria cultivava milho geneticamente modificado há três anos. «Medo não tive, mas fiquei na expectativa. O prejuízo seria enorme.» A acção do Movimento Verde Eufémia não atingiu a Herdade da Godinha mas trouxe para as bocas do mundo a questão dos transgénicos produzidos em Portugal.
José Maria foi dos primeiros a semear milho transgénico por cá. O milho Bt ou milho Mon 810 é resistente a insectos e o seu cultivo está autorizado desde 2005. Em Portugal estão autorizadas duas espécies transgénicas: o milho Bt e a batata amflora, mas esta tem menos adeptos, porque não serve para a indústria não alimentar, enquanto o milho Bt encontra mercado nas rações para gado.
«Nessa altura havia muito receio dos efeitos na saúde e no ambiente», recorda José Maria Rasquilha. Mas isso não o fez recuar na decisão que havia tomado anos antes, «depois de ler e de ouvir falar da engenharia genética na agricultura», já então aplicada em vários países. «Sempre tive muita curiosidade sobre as sementes transgénicas. Li as conclusões de vários estudos científicos e falei com agricultores americanos. A experiência de outros países fez-me acreditar que não havia razão para preocupações.» No início e a título experimental cultivou milho Bt em 120 hectares, deixando os restantes com milho convencional. No ano seguinte aumentou a área para 230 hectares. Em 2007, já «completamente rendido às vantagens económicas» do milho Bt, decidiu ocupar trezentos hectares da Godinha com essa variedade.
Se pudesse, José cultivava só milho transgénico. «Permite-me uma produção superior da ordem das duas toneladas por hectare. No ano passado foi de três, porque foi um ano de grandes ataques de broca, o que me reduziu muito a produção de milho convencional.» A diferença está à vista: depois de quilómetros de paisagem dominada por pés de milho cortados, chegamos ao refúgio - o espaço que, manda a lei, todos os agricultores de transgénicos têm de guardar para o milho normal, para evitar que os insectos ganhem resistência ao outro. O agricultor desfolha várias espigas normais, pondo à vista as maçarocas. Todas, sem excepção, têm broca - as lagartas que são o pesadelo de qualquer produtor. «Nas espigas de milho Bt não tenho este problema.»
A broca pode destruir vinte a sessenta por cento das plantações. «Durante 25 anos só cultivei milho convencional, sem fazer rotação, e a dada altura comecei a ter dificuldades em controlar os insectos.» Para combater as pragas fazia «três, quatro, às vezes cinco aplicações de químicos e os resultados nem sempre eram satisfatórios». Com o milho transgénico diz que consegue uma produção superior, «porque a broca não o ataca».
A garantia é científica: a resistência aos insectos obtém-se através da própria planta, do gene da bactéria Bacillus thuringiensis (daí a designação Bt), que produz toxinas com propriedades insecticidas. Os transgénicos não são mais produtivos do que as variedades convencionais, estão é mais bem protegidos contra as pragas e por isso atingem o seu máximo potencial, explica o investigador em biologia vegetal Pedro Fevereiro e também presidente do Centro de Informação de Biotecnologia (CIB).
José Maria Rasquilha não tem dúvidas. «Não preciso de pesticidas nem gasto o gasóleo que gastava quando levava as máquinas para o campo para fazer as aplicações. Uma vez deitado à terra, apenas rego e faço coberturas azotadas.»
Há mais de cem anos que a família de Maria Gabriela é de agricultores e por isso ela não tem pejo em orgulhar-se de produzir transgénicos. A Herdade Melinho, em Elvas, foi comprada pelos bisavós paternos, passou para as mãos dos avós e depois para a dos pais. Agora, desde há 22 anos, precisamente «desde o dia 15 de Outubro de 1989», está a cargo desta agricultora de 49 anos. Das três irmãs nenhuma quis continuar o legado. Embora Gabriela não tenha sonhado com esta vida, tirou o curso de Agronomia e fez-se agricultora. Foi para fazer a vontade ao pai, mas não se arrepende, se bem que as temperaturas quentes dos verões alentejanos às vezes a façam vacilar.
Nos quinhentos hectares da Melinho produz ervilha, trigo, cevada e milho e faz criação de vacas. Chegou a produzir arroz e beterraba para açúcar, mas abandonou «porque deixaram de ser rendíveis com a reforma da PAC [Política Agrícola Comum] e da política agrícola nacional, que abriu o mercado às importações». O milho Bt é hoje a cultura principal, ocupando noventa hectares. Desta decisão também não se arrependeu. Todos os anos aumenta a área, porque tem registado «um acréscimo na produção entre os oitocentos e os mil quilogramas por hectare».
Maria Gabriela não percebe a posição da União Europeia no que respeita aos organismos geneticamente modificados. Estão aprovadas espécies que resistem às pragas, mas não às ervas daninhas. «Compramos fora o que estamos proibidos de produzir. Seria vantajoso para nós termos acesso, como os agricultores norte-americanos e latino-americanos, a outras variedades de milho. Por exemplo resistentes a herbicidas, o que nos permitia reduzir consideravelmente a utilização de químicos, já para não falar dos benefícios ambientais inerentes, para que não precisássemos de regar tantas vezes e de gastar muita água e energia para a bombear, e outras culturas, como a soja, resistente à broca e tolerante a herbicidas. Se Portugal compra, porque não pode produzir? Porque não pode nenhum país da EU produzi-la? É um contra-senso.»
Para o investigador Pedro Fevereiro «não é um contra-senso, é uma hipocrisia». «Proibir a comercialização iria levar à falência os produtores de vacas, porcos, galinhas e de rações para gado. Sem a soja e o milho transgénico dos Estados Unidos e da Argentina, não haveria rações suficientes para alimentar estes animais na Europa.» Em Portugal, a maioria das rações para gado contém farinha de milho e de soja produzida em França - o país mais anti-OGM da União Europeia, a que se juntam a Alemanha, a Grécia, a Áustria, a Hungria e o Luxemburgo -, mas também nos Estados Unidos, na Argentina e no Brasil, onde o cultivo de transgénicos há muito superou as variedades convencionais. «Na realidade, esta incapacidade prejudica largamente os agricultores europeus, que vendem o seu produto num mercado globalizado ao mesmo preço que os agricultores americanos, usufruindo estes de reduções de custos de produção importantes e de melhor produtividade.» O presidente da associação que representa os fabricantes de rações para animais, Jaime Piçarra, diz que «a produção nacional de matéria-prima para rações é insuficiente para satisfazer as necessidades das fábricas. Portugal está a comprar fora setenta por cento do milho que consome, a maior parte é utilizada em rações para gado».
Num ano, de 2010 para 2011, a área de cultivo de milho transgénico em Portugal aumentou sessenta por cento, ocupando pouco mais de sete mil hectares. Há mais no Alentejo (4460 hectares), segue-se a Região de Lisboa e Vale do Tejo, o Centro, o Norte e, por último, os Açores. Além do Alentejo, o Mondego é das zonas mais vulneráveis à destruição pelas lagartas. E foi depois de anos a perder vinte por cento do milho para as pragas que o agricultor João Monteiro Grilo decidiu experimentar os transgénicos. Foi há cinco anos e desde então as campanhas têm sido de «produtividade máxima» na sua Quinta dos Torreões, em Coimbra.
João pertence a uma família que vive da agricultura há várias gerações, tantas que não tem memória de quem iniciou a actividade. Quando ele era miúdo, trabalhavam na quinta 17 pessoas, com a renovação das alfaias e a modernização dos equipamentos o trabalho passou a exigir menos pessoal. João só tem uma funcionária. «Os dois, conseguimos dar conta de tudo. Não sou do tipo de agricultor que passa o tempo a gerir o negócio. Faço isso e arregaço as mangas, conduzo as máquinas, semeio, colho, seco. Tudo o que há para fazer, faço.»
A colheita do milho já terminou [a cultura principal na Primavera/Verão, no Outono/Inverno faz aveia]. Já era assim no tempo do pai. A João não agradou a mudança para milho transgénico. «No início torceu o nariz. Era uma nova tecnologia e teve receio dos resultados. Com o tempo acabou por aceitar, depois de ver as espigas limpas, sem broca. Esta é uma zona particularmente sensível. Tive anos de grandes prejuízos. O meu pai também.»
A Quinta dos Torreões tem 130 hectares e João faz questão de manter o cultivo de milho convencional em três deles: «Quero constatar as diferenças entre uma variedade e outra, ver se se mantêm ao longo dos anos. É uma maneira de monitorizar os resultados.» Tal como José Maria Rasquilha e Maria Gabriela Cruz, este produtor também anseia pela aprovação de outras variedades de milho transgénico para Portugal. E sem medos. «Eu confio na tecnologia, confio na ciência», diz João. «O que produzimos é só para animais, mas costumo levar maçarocas de milho transgénico para casa, asso-as, como-as e dou-as também aos meus filhos. Nós, agricultores, devíamos era estar a produzir mais, porque só conseguimos satisfazer um terço das nossas necessidades de consumo.»
A favor
É consensual que as variedades transgénicas permitem mais ganhos de produtividade. O que continua a gerar polémica é a segurança alimentar e ambiental. Para Pedro Fevereiro, investigador em biologia vegetal e presidente do CIB, Centro de Informação de Biotecnologia, os receios são infundados: «Não existe qualquer dado de saúde pública que mostre alguma afecção causada pela ingestão de alimentos contendo produtos provenientes de variedades transgénicas aprovadas para consumo.» Em alguns casos, «as variedades transgénicas são até mais saudáveis, porque apresentam níveis inferiores de micotoxinas (toxinas de origem fúngica, resultantes das infestações de fungos patogénicos após ataques de insectos)». Também para o ambiente, reforça o cientista, não estão provados riscos superiores a outras práticas agrícolas. A contaminação ou poluição ambiental de que falam as associações ambientalistas diz respeito «à possível produção de híbridos entre variedades convencionais (ou tradicionais) de uma determinada espécie e variedades dessa mesma espécie geneticamente modificadas. Em casos muito particulares, é ainda possível o cruzamento das variedades transgénicas com espécies selvagens afins. É verdade que os híbridos, se libertos na natureza, poderão dar origem a descendências que conterão no DNA os novos genes existentes nas variedades transgénicas, mas isso não parece, até ao momento, ter efeitos negativos na biodiversidade».
Do contra
Embora as associações ambientalistas sejam contra o cultivo de sementes transgénicas, o Grupo de Acção e Intervenção Ambiental (GAIA) foi o único que apoiou a destruição de um campo de milho transgénico, em 2007, pelo Movimento Verde Eufémia. O GAIA defende a proibição do cultivo de transgénicos à escala global, lutando pela «inversão do rumo da agricultura, sobretudo na Europa, onde os modos de produção intensivos se sobrepõem cada vez mais à agricultura tradicional e de pequena escala». Diz o dirigente deste grupo, Gualter Barbas Baptista, que «as variedades geneticamente modificadas representam uma ameaça para a saúde pública e para o ambiente», que, garante, «tem vindo a ser demonstrada por um conjunto crescente de literatura científica». E quanto aos benefícios para os agricultores, Gualter Baptista contraria o que os próprios testemunham: «Não há efeitos positivos para o sector agrícola e para a sociedade em geral, uma vez que não têm trazido aumentos reais de produtividade, além de que tendem a acentuar a concentração da produção e direitos sobre as sementes.»