Tráfico de droga digitalizou-se mas "voltará à rua, ao dealer já conhecido"

Confinamentos levaram o contrabando de droga para as redes sociais e aplicações de mensagens encriptadas. João Matias, analista científico do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA), acredita no regresso ao passado.
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Qual é que é o ponto de partida para o relatório "Drogas 2021: Tendências e Evoluções", do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência deste ano, tendo em conta que vivemos num novo contexto? Houve impacto da pandemia nos padrões de consumo e tráfico?
Era inevitável falar do impacto da pandemia de covid-19 nos padrões de consumo e nos serviços para as pessoas que utilizam drogas. Portanto esse foi também o ponto de partida para refletirmos sobre o que tínhamos vindo a fazer no ano de 2020. Porque também tivemos que nos adaptar ao confinamento, ajustando os nossos métodos de monitorização epidemiológica, quando viemos para casa em teletrabalho.

Que dados conseguiram apurar em relação ao impacto da pandemia?
Em termos do impacto direto da pandemia vimos que mais do que criar novas tendências, deixou mais visíveis algumas que já lá estavam presentes nos últimos anos. Por exemplo, a maior digitalização dos mercados, a utilização de plataformas de redes sociais, de troca de mensagens encriptadas, ou o envio de substâncias através de correios. Tudo isso é muito mais visível agora durante a pandemia. Mas era algo que já acontecia antes.

Os confinamentos alteraram os padrões de consumo?
O que vimos foi uma mudança da vida noturna, com o fecho de bares e discotecas, e com a não existência de festivais de música, para uma vida mais familiar, em que o interesse por determinadas substâncias também mudou. Por exemplo, observámos o decréscimo do consumo de ecstasy (ou MDMA), por também não ser uma substância tão utilizada em contexto de casa, mas mais no contexto recreativo.

Ou seja, encontraram de facto uma mudança de hábitos de consumo e um impacto no tráfico, devido à pandemia...
Tentámos repensar um pouco a forma como percebemos a dinâmica dos mercados e dos consumos de substâncias ilícitas. E, ao fazer isso conseguimos responder a algumas das perguntas que tínhamos. Será que a pandemia vai afetar as substâncias consumidas? Aumentará mais umas ou outras? Será que a restrição nos voos vai alterar os métodos e as rotas de tráfico? Será que o fecho de serviços de saúde terá um impacto na saúde daqueles que decidem consumir drogas?

E, qual é a tendência dessa adaptação? O tráfico por meios digitais deverá manter-se após a pandemia?
É uma das questões em aberto. A pandemia está a acontecer. Todos tivemos de nos adaptar. Adaptar métodos de pesquisa e vamos ter de ver a médio longo prazo o impacto nos mercados e nos consumidores. Algumas conclusões - como uma maior digitalização do mercado, novos métodos de tráfico, o maior distanciamento social, em termos de quem compra e de quem vende - muito disso irá manter-se. Mas é inevitável voltarmos a alguns dos comportamentos anteriores, como o método de compra na rua, ao dealer já conhecido. Porque nessas relações sociais, e de troca de bens, há também a componente que já existia da confiança. Muito disso irá voltar. Já aconteceu no verão passado, quando as medidas de confinamento aligeiraram um pouco, em todos os países europeus, com um aumento nos consumos muito comparáveis com os anos anteriores.

O Observatório olha também para o combate, e para a necessidade de adaptação das autoridades?
O Observatório tem duas componentes científicas muito focalizadas na área da saúde pública e na área da segurança. Recolhemos também dados sobre apreensões, graus de pureza, ou de preços das drogas. Tentamos ter uma visão balanceada do panorama das drogas. Então, também há um foco na parte mais da segurança. Aí vimos que por exemplo a produção de drogas, principalmente sintéticas - que já ocorria a nível europeu, com as anfetaminas e metanfetaminas, principalmente Holanda e Bélgica - continuou. Não vimos grandes alterações causadas pela pandemia. Por exemplo, o número de laboratórios clandestinos desmantelados manteve-se estável. Não vimos um decréscimo ou menos atividade nessa área. Os grupos de criminalidade organizada intensificaram também a produção ilegal de droga na Europa. Continuamos a ver um aumento nas apreensões de cocaína, com recordes do número e das quantidades de cocaína apreendida no continente europeu.

Terá de haver adaptação ao nível do combate, nos meios digitais?
Eu diria que a pandemia só veio reforçar e tornar mais visível esse fenómeno online. Devo também dizer que a proporção de pessoas que adquire substâncias através dos meios online é ainda pequena, quando comparada com os meios tradicionais de rua, com o "dealer" que já se conhece. Mas obviamente que as autoridades terão de se adaptar. Mas, aí a responsabilidade de adaptação dos métodos de combate está no nível nacional para assim tentarem ter mais controlo sobre os novos métodos de venda e de tráfico. Sim, terá de haver uma adaptação, mas acho que anteriormente já estava a acontecer esse processo.

dnot@dn.pt

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