Tradição jurídica de Goa acentua autonomia dentro da Índia - analistas

Goa, Índia, 07 mai 2019 (Lusa) -- A tradição jurídica é "fortíssima" em Goa, único antigo território ultramarino onde há uma "verdadeira escola de direito local", e essa circunstância é determinante na natureza da autonomia do estado no âmbito da União Indiana, consideram vários especialistas.
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"É muito importante percebermos que em Goa há uma tradição jurídica local fortíssima. Houve goeses licenciados em direito por Coimbra e mais tarde por Lisboa desde o século 19, de forma sucessiva, ocupando cargos muito altos na magistratura portuguesa e depois também em Goa", diz Luís Cabral de Oliveira, investigador no Centro de Investigação e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (CEDIS/FDUNL).

Esta "escola de direito local" teve um papel importante na manutenção de grande parte das leis de âmbito não criminal de origem ou inspiração portuguesa, que enquadram ainda hoje os usos e costumes em vigor em Goa.

"A grande beleza da aplicação do direito português em Goa, e talvez o segredo desta sua sobrevivência, foi o facto de grande parte dos institutos jurídicos portugueses ter sido aplicada de forma muito sábia à realidade goesa pelos juristas locais", explica Cabral de Oliveira.

A "arte principal" destes juristas "adaptarem e aplicarem" o direito português à "realidade goesa" tornou essa legislação bem vista pela população local e isso foi reconhecido pelo próprio Parlamento indiano, quando em 1962 adotou o "Goa, Daman and Diu, Administration Act", mantendo em vigor toda a legislação portuguesa existente à data da integração desses territórios na União Indiana.

Dessa legislação fazia parte o Código Civil português de 1867, que era o código que vigorava também em Portugal a essa data, que se manteve sempre em vigor em Goa, sobretudo nos domínios do direito da família e no direito das sucessões, não obstante, até outubro do ano passado, não existir uma tradução oficial da lei e ela não estar, por isso, conforme com a Constituição indiana.

"O código civil português, tal como aplicado em Goa, nunca foi um código monolítico. Teve uma série de emendas e alterações e especificações dirigidas à sociedade goesa. As leis indianas têm códices diferentes para cada comunidade religiosa, enquanto o código civil português é uniforme e aplica-se a toda a sociedade goesa, independentemente da religião ou do género", explica Aurobindo Xavier, presidente da Sociedade Lusófona de Goa, contactado ao telefone pela Lusa.

Esta lei manteve-se tanto tempo "porque é bem aceite pela comunidade, especialmente as disposições relacionadas com a sucessão e o casamento. Os seus méritos têm que ver, sobretudo, com um grande equilíbrio entre géneros, em especial quando comparamos esta lei com outras em vigor no resto da Índia", confirma Saba V.M. da Silva, professor principal no Govind Ramnath Kare College of Law e membro do Gabinete de Estudos Jurídicos da Universidade de Goa.

A presença do direito anglo-saxónico faz-se sentir cada vez mais em Goa, em variadíssimos aspetos, assim como o direito tradicional, designadamente da comunidade hindu, mas também da muçulmana. Não obstante, o direito de base portuguesa, "cumpre a sua função e contribui para a pacificação social, porque não é um direito imposto de cima para baixo, é um direito que as pessoas sentem como natural, como seu", diz Miguel Romão, professor de História do Direito e Direito Internacional na faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), e diretor-geral de Política de Justiça.

Este direito dito "português" enfrenta, porém, cada vez mais desafios. O código civil português, por exemplo, "já não tem força para dar resposta às exigências dos novos tempos", diz Aurobindo Xavier.

"Vejo isso dentro da minha família em Goa e nas famílias dos amigos. Há uma conflitualidade cada vez maior por causa dos bens, especialmente terrenos e casas", acrescenta.

O direito português ainda é muito utilizado em Goa no domínio do direito real, que se relaciona com a propriedade, com o usufruto, o usucapião, a posse, com o registo dos prédios, rústicos e urbanos, e as figuras que os podem onerar.

Mas "não há dúvida" de que este direito, e sobretudo o Código Civil português, está "sob pressão", por várias razões. "Uma delas é por ser já um código que tem mais de 150 anos e acusa a usura do tempo", sublinha Dário Moura Vicente, presidente do Instituto de Cooperação Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).

"É natural que, mais cedo ou mais tarde, as autoridades goesas entendam vir a substitui-lo por uma codificação mais moderna, adaptada às necessidades do século 21", acrescenta.

"O direito só faz sentido quando reflete a sociedade. Hoje, na minha opinião, a sociedade goesa já não reflete o espírito do Código de 1867", diz Luís Cabral Oliveira.

A existência de Goa como um estado autónomo dentro da União Indiana resulta de um referendo realizado em 1967, em que foi perguntado à população se pretendia ser um estado autónomo ou integrar-se no estado vizinho do Maharashtra. A população escolheu a autonomia, e "isto revela uma vontade dos goeses preservarem a sua identidade própria, que é perfeitamente distinta, quer dos estados vizinhos quer do resto da Índia", sublinha Moura Vicente.

Essa "preservação da identidade", continua o professor da FDUL, acontece através da língua, e mantém-se através da preservação do património cultural, que é muito rico em Goa, e do direito de matriz portuguesa.

"Portugal tem procurado fomentar as relações com a Índia no plano económico, o nosso primeiro-ministro esteve lá em 2017, procurou-se também reforçar o ensino da língua portuguesa, o Instituto Camões está presente em Goa, mas há este outro laço cultural entre Portugal e a Índia, que é a circunstância de mantermos lá uma codificação nossa, antiga, é certo, mas que é muito bem recebida pela população local", recordou.

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