Toque a rebate pela consciência coletiva

Um é franciscano capuchinho, outro é jornalista. Frei Fernando Ventura e Joaquim Franco assinam em duo o livro <em>Todos Nós Somos Sendo,</em> uma conversa em que o foco está na responsabilidade de cada um num mundo anestesiado pela desgraça.
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"Fratelli tutti: escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro." Assim começa a Carta Encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco, datada de 3 de outubro de 2020, que tem como mote a importância da fraternidade e da amizade social. O mundo ultrapassara os primeiros seis meses de covid-19, ainda sem garantias quanto à possibilidade das vacinas em estudo estancarem a avalanche de mortes e de vidas viradas do avesso, e o Papa procurava fazer da provação de todos um toque a rebate pela consciência individual e coletiva. É deste ponto, e deste texto que os autores consideram fundamental, que nasce o terceiro livro em conjunto do frade franciscano capuchinho Frei Fernando Ventura e do jornalista especializado em temas religiosos, Joaquim Franco, Todos Nós Somos Sendo (edição Contraponto): "Não estava nos nossos horizontes fazer um terceiro livro, até porque acreditávamos que o segundo, Somos Pobres mas Somos Muitos, fosse a conclusão dum diálogo que começara anos antes com o primeiro título, Do Eu Solitário ao Eu Solidário", conta ao DN Joaquim Franco. "Este primeiro livro projetava um tempo e desenhava uma expectativa global que veio a concretizar-se com a eleição do Papa Francisco, em 2013. Mas depois a Júlia Pinheiro desafiou-nos a criarmos uma rubrica sobre estes temas no programa dela e, mais tarde, o editor Rui Couceiro convidar-nos-ia a escrever um novo livro." O que veio a acontecer num contexto inimaginável para eles e para a maioria das pessoas: o da pandemia e o do confinamento obrigatório.

Para Frei Fernando Ventura, o grande objetivo é "a partilha de ideias num mundo cheio de opiniões. As ideias em si são quistos, com tendência para a putrefação. Só vivem e são férteis se as pusermos em relação com outras ideias". Este diálogo começou em 2020, quando Frei Fernando estava em quarentena com covid, embora sem sintomas nem queixas: "Sentimos que era mais importante do que nunca chamar as pessoas à consciência coletiva de que são parte dum todo e que, na verdade, todos somos responsáveis pelo bem comum", diz. Os dois insistem muito no conceito bíblico de metanoia, bem expresso no uso do gerúndio no título da obra Todos nós somos Sendo: "O que queremos dizer é que só somos se formos", afirma o religioso. "Procuramos combater a pandemia da indiferença, desafiando as pessoas a irem para além dos pré-conceitos, dos pré-juizos, das nossas certezas absolutas, políticas ou outras. Aquilo que poderia ter sido um empurrão para a frente no sentido da consciência coletiva não aconteceu e ela volta a ser da maior importância agora que estalou uma guerra de grandes proporções." Mas nem só o palco do conflito armado angustia os autores. É com preocupação que Frei Fernando encara a violência que se instalou na comunicação de todos os dias, entre cidadãos: "Não me assusta que as pessoas tenham as suas opiniões (cada um tem o que pode) mas o modo como se comunica, a violência com que se comunica, é muito chocante - na Política, na Culinária, no Desporto, no que for. Educamos as crianças para a competição e não para a colaboração. E se as educássemos para a vida com o Outro e não para a vida contra o Outro?"

Joaquim Franco recorda que, no momento em que deram o livro por encerrado, a Rússia ainda não invadira a Ucrânia mas, diz, "já soavam os tambores e nós sentíamos isso. Como tal, refletimos também sobre o papel que o Papa Francisco poderá desempenhar em contextos de beligerância". E continua:"Infelizmente esse papel não tem o peso que nós gostaríamos mas não deixa de ser um farol ou um sino de consciência que está a tocar em permanência junto da consciência coletiva." Do que nenhum dos dois autores não duvida é da importância que o jesuíta Jorge Mario Bergoglio assume na História da Igreja Católica. "Em 2013, quando decorria o conclave que o elegeu, o Joaquim e eu adivinhámos que seria ele e dissemo-lo na televisão. Não porque estivéssemos a fazer algum Papaloto mas porque acreditávamos que vingaria uma via de mudança que só poderia ser assumida por dois cardeais: Bergoglio ou O"Malley, cardeal de Boston".

Ambos concordam que Francisco confirmou as expectativas de quem o sentou na cadeira de São Pedro mas temem o futuro. Para Frei Ventura" a figura de Francisco não é consensual, a base de apoio dele está muito mais fora da Igreja do que dentro de algumas estruturas desta. O pós Francisco vai trazer um momento de definição do que a Igreja vai ser no futuro." Mais otimista, Joaquim Franco pensa que "dificilmente voltaremos atrás em muitos dos passos que foram dados pelo Papa, nomeadamente a abertura ao papel do laicado, o processo de abertura ao mundo e até a valorização da mulher, embora ainda de forma tímida, a desmitificação de Roma como centro de todas as decisões. Há uma série de passos e intenções que geraram uma tal dinâmica que voltar atrás poderia significar uma rutura. Espero, pois, que haja uma solução de continuidade a seguir a Bergoglio."

O apelo à partilha de ideias e ao diálogo que defendem neste livro é extensivo a religiões que historicamente se enfrentaram entre si. Mas este lastro, tantas vezes de sangue, não pode pesar mais do que a vontade de construir em conjunto, afirma Frei Ventura: "É preciso que o vizinho seja um bom budista, um bom muçulmano ou judeu para que eu possa ser um bom cristão. E vice-versa." E conta como no ano passado, no dia do aniversário da Declaração dos Direitos do Homem, se encontrou com o sheik Munir e com o rabino chefe da Sinagoga de Lisboa, para juntos lerem a oração de São Francisco de Assis: "Foi um momento único, em que me senti orgulhoso de ser português. Entrei na Mesquita de Lisboa e o que vejo? O rabino, sentado a ler, com toda a tranquilidade. E pensei: que privilégio vivermos num país em que isto acontece."

Todos Nós Somos Sendo

Contraponto

15,50 euros

176 páginas

dnot@dn.pt

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