Top Secret: neste verão, Madrid é a cidade dos espiões 

Centenas de peças, documentos, história, filmes e instalações dão cor e matéria reflexiva à exposição <em>Top Secret: Cine y Espionaje</em>, para visitar na CaixaForum de Madrid até outubro. De Mata Hari à era dos <em>whistleblowers</em>, passando pela popularidade de James Bond, este é o contexto perfeito para explorar a fantasia de uma identidade secreta.
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À medida que se percorre o trajeto ordenado das divisões, ouve-se falar baixinho em castelhano, aqui e ali apanham-se comentários em inglês com diferentes sotaques, mais à frente, diante de uma vitrina com um telefone do KGB, uma família italiana aproxima-se para ler a legenda, e acolá, junto à máscara branca do vilão do último 007, um casal português recorda essa cena inicial do filme de Cary Joji Fukunaga. Entrar na exposição Top Secret: Cine y Espionaje por estes dias é descobrir, ao lado de espanhóis e turistas de diversas nacionalidades, um amplo universo que vai da lendária personagem criada por Ian Fleming a Edward Snowden. Mas pode ser também uma experiência que nos impele a espiar o outro... só porque sim. A ver em que objetos e ecrãs se demora ou passa de raspão. Patente na CaixaForum de Madrid, até 22 de outubro, esta mostra que provém da Cinemateca Francesa e de outros museus e coleções particulares integra quase 300 peças de uma história que continua a ser contada, entre a ficção e a realidade.

Justamente, num dos textos introdutórios do catálogo da exposição, é o próprio diretor da Cinemateca Francesa, Frédéric Bonnaud, quem realça que "a espionagem é sinónimo de ficção, de arranque de uma história. A espionagem já é ficção em si mesma e nunca se lhe negou o sucesso, desde os tempos dos folhetins radiofónicos até às séries de televisão mais atuais, porque joga com o mais íntimo e poderoso dos recursos: fingir ser o que não se é, saber-se clandestino a céu aberto, viver mais vidas do que a própria." A ideia é retomada uns parágrafos depois, quando fala do caso do cinema, em particular, como máquina criativa que "se apodera do nosso imaginário, conhece os nossos segredos e sabe antecipar-se aos nossos desejos para exercer melhor o seu controlo, esse famoso "controlo do universo" atribuído por Jean-Luc Godard a Alfred Hitchcock".

No centro cultural situado na zona do Paseo del Prado, revisitamos então alguns momentos da filmografia de Hitchcock, sim (com destaque para a cena de Notorious em que Ingrid Bergman faz um malabarismo para esconder a chave de Claude Rains), mas também Fritz Lang, que assinou um dos primeiros filmes sobre a espionagem entre Estados, Spione (1928), e vários outros títulos de realizadores menos especializados no tema mas com a sua marca deixada no género, como O Caso Cícero (1952), de Joseph L. Mankiewicz, O Vigilante (1974), de Francis Ford Coppola, ou Argo (2012), de Ben Affleck. Isto antes de se chegar à grande referência, cujo familiar tema de John Barry está sempre a soar em fundo...

Sobre a evidente correspondência entre o trabalho do cineasta e do espião, diz a diretora adjunta da Fundação "la Caixa", Elisa Durán, que "tal como o espião, o realizador de cinema observa, filma e, quando necessário, recria o mundo usando procedimentos cada vez mais sofisticados para captar imagem e som: desde minúsculas câmaras fotográficas a moviolas e todo o tipo de dispositivos, às vezes ocultos em objetos de uso quotidiano, com os quais realiza filmes e escutas."

No fundo, é este exercício reflexivo que a exposição Top Secret sugere ao reunir imagens e objetos de natureza distinta, que tanto oferecem informação essencial sobre uma certa narrativa cinematográfica ao longo do tempo, como traduzem a dimensão real do ato de espionagem.

Dividida em cinco espaços temáticos - Espionagem e Cinema, uma história de técnicas; Clandestinas das grandes guerras; Guerras frias e gentlemen; Terrores e terroristas (da década de 1970 aos nossos dias), e Todos espiões? O cidadão espião: perspetivas de futuro -, a mostra leva o público num percurso que se vai tornando cada vez mais inquietante (e porque não divertido?), ao ponto de a ideia de estarmos a ser observados se tornar, de algum modo, uma certeza.

Navegamos entre cartazes de cinema e figurinos, desenhos, pinturas e storyboards, instalações e excertos de filmes (clássicos e contemporâneos), documentos, gadgets e todo o tipo de apetrechos que expandem o imaginário da vida dos agentes secretos. Mais uma vez: é quase possível que nos sintamos um desses seres sob disfarce, com acessórios "à mão" que ultrapassam o domínio ficcional. Há, por exemplo, máquinas fotográficas que se fazem passar por maços de cigarros, gravadores em relógios, câmaras em isqueiros, sapatos com navalhas, um batom com pistola de calibre 6mm, kits de maquilhagem da Stasi (polícia secreta da República Democrática Alemã), um guarda-chuva com veneno na extremidade (usado pelos serviços secretos búlgaros em 1978 para assassinar o escritor dissidente Georgi Markov) e um chapéu com coldre, da autoria do MI6.

Ao contrário do que seria a norma, o cartaz de Top Secret: Cine y Espionaje não é o rosto de um Sean Connery ou Roger Moore de arma em riste, mas sim o de Greta Garbo no papel de Mata Hari. Nas palavras dos comissários da exposição, Alexandra Midal e Matthieu Orléan, "Top Secret opõe-se também à representação sexista das espias, durante tanto tempo relegadas no inconsciente coletivo a um único papel de "isco" provocador debaixo dos lençóis, e recorda o seu considerável contributo estratégico, uma realidade que o cinema soube captar, precocemente, desde os seus primórdios. Desde Protéa, entusiasta do jiu-jitsu e a primeira mulher espia da história do cinema (1913), a Mata Hari, fuzilada por colaboração com o inimigo alemão [durante a Primeira Guerra Mundial]."

Pois bem, na secção dedicada a esse ascendente feminino encontra-se não só documentação relativa à verdadeira Mata Hari (1876-1917), como as suas expressões míticas no grande ecrã, pelo carisma de atrizes como Jeanne Moreau e Sylvia Kristel, para além de Garbo. Esta última surge aqui retratada por Andy Warhol numa estonteante litografia de 1981, com a intensidade da cor vermelha a puxar-nos para dentro da moldura, de onde emergem os olhos a meia haste sombreados de azul.

Embora não seja oficialmente uma Mata Hari, também Marlene Dietrich assumiu a sua versão da espia sedutora no magnífico e trágico Desonrada (1931), de Josef von Sternberg. Numa tela onde passam alguns trechos de filmes, lá a vemos como Agente X 27, a tirar do sério o coronel Kranau, que lhe chama "demónio", claro, com medo de se apaixonar perdidamente... Uma das pequenas delícias da exposição.

Neste conjunto de referências femininas relacionadas com as grandes guerras, o outro nome incontornável é Hedy Lamarr, a atriz que causou escândalo em 1933 por protagonizar a primeira cena de orgasmo no cinema, no filme checo Êxtase, de Gustav Machatý. O seu currículo não se resume, porém, a esse golpe inicial. Já instalada em Hollywood, e aborrecida com os papéis que lhe davam, começou a interessar-se por tecnologia militar. Resultado: em 1942, em parceria com o pianista George Antheil, registou a patente de um sistema de comunicação de salto de frequência que, basicamente, evitava que mensagens militares fossem intercetadas pelo inimigo. Uma técnica revolucionária oferecida às Forças Armadas americanas, que a declinaram, possivelmente achando que a austríaca Lamarr era uma espia... O certo é que a sua invenção se reflete nos dias de hoje (olá telemóvel, GPS, Wi-fi), e mesmo à época ela não desistiu de contribuir para o esforço de guerra, no papel adequado em filmes como Os Conspiradores (1944), de Jean Negulesco, cuja ação se passa numa Lisboa recriada em estúdio.

Como não podia deixar de ser, a meio de Top Secret deparamos com a memorabilia artística do mais popular agente secreto, James Bond, encarnado, até à data, por seis atores que dispensam apresentação. São os tempos da Guerra Fria e os ditos objetos (imensos gadgets) propõem a "viagem" expectável pela série de filmes. Uma nota da exposição dá conta de que Ian Fleming teria gostado de ver os seus romances adaptados pela mão do mestre Hitchcock - apesar da falha, não se pode dizer que a vida de 007 no ecrã tenha corrido mal.

Do Bloco de Leste, com aquele cinzentismo do terror dos anos 1970, à época Edward Snowden, início do século XXI, em que todos somos potenciais espiões, é um saltinho. Nessa secção final o destaque vai para a instalação Probably Chelsea, de Heather Dewey-Hagborg, que apresenta cerca de 30 rostos diferentes da whistleblower Chelsea Manning gerados por algoritmos a partir do seu ADN (doou-o enquanto estava na prisão, proibida de ser visitada). Ou seja, a prova de que a informação do ADN pode ser interpretada de múltiplas maneiras...

À saída da exposição, fica na pele o arrepio do olhar: aquele que se dirige ao outro e o que recai sobre nós, pelas mais criativas lentes. Eis, pois, o admirável e temível mundo da espionagem, no cinema e fora dele.

O DN viajou com o apoio da Delegação Oficial do Turismo Espanhol - Embaixada de Espanha

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