Tomás Salgado: Lisboa é a melhor cidade do mundo para se viver
Tínhamos combinado um pequeno-almoço mas às nove da manhã esse assunto alimentar estava arrumado. Com três filhos, Tomás Salgado, 45 anos, resolveu as torradas muito antes das nove e o que lhe falta agora é tomar mais uma bica. O arquiteto tinha escolhido a cave de um café de Alvalade, pensando que seria um sítio sossegado para conversar, mas uma breve visita ao local, com vozes matinais, música ambiente e um secador de mãos, fez-nos optar pela esplanada, aquecida pelo sol. Buzinadelas e transeuntes a falar ao telemóvel não atrapalham gravações.
Na véspera, Tomás tinha sido o rosto da equipa de arquitetura que entregou à Federação Portuguesa de Futebol a nova cidade desportiva. O ateliê Risco, coordenado coletivamente por ele próprio, Jorge Estriga, Nuno Lourenço e Carlos Cruz, pôs de pé todo o complexo num tempo recorde. Desde a preparação do projeto para o concurso até agora foram 26 meses intensos de trabalho.
Sentados com os nossos cafés na esplanada da Padaria Portuguesa da Avenida da Igreja, Tomás come uma fina fatia de bolo surripiada do balcão, eu um pãozinho com manteiga. Conhecemo-nos desde que terminou o curso de Arquitetura, em meados dos anos 1990, e participou no projeto da Expo"98. Nessa altura, ele era "o Tomás", o jovem filho do arquiteto e urbanista responsável pelo recinto, Manuel Salgado.
A ele - à pesquisa, à escolha e ao acompanhamento da obra - podem as crianças das gerações seguintes agradecer as chuveiradas dos vulcões de água da Alameda dos Oceanos, para citar o elemento mais visível do trabalho em que se envolveu.
Mantém o ar tranquilo e de pessoa de bem com a vida, o sorriso mais do que simpático, o rosto de menino, mas estas duas dezenas de anos deram-lhe a gravidade do profissional. Temos uma cumplicidade que vem desse tempo, porque somos parte de uma comunidade de alguns milhares a que podemos chamar "os que trabalharam na Expo". Por exemplo, diz o Tomás: "Lembras-te da Manuela? Ela está na Cidade do Futebol, e cada vez que nos encontramos damos grandes abraços e falamos de histórias daqueles anos."
Lembro-me da Manuela, claro, e também de António Laranjo, o homem da Cidade do Futebol com quem nos cruzávamos diariamente no período de construção da Expo"98, e que foi depois responsável do projeto Euro 2004, momentos mais públicos do extenso currículo do engenheiro.
Agora senta-se à nossa mesa, com um café, o arquiteto Jorge Estriga, 52 anos, formado na escola de arquitetura do Porto e com um Erasmus em Milão - Tomás estudou em Lisboa, fez Erasmus em Barcelona e passou pelo ateliê de Vittorio Gregotti em Milão. Jorge também fez parte da equipa da Expo"98, e por isso falamos das árvores do Parque das Nações que vimos ser plantadas raquíticas e agora estão tão crescidas. Eles recordam como Manuel Salgado lhes deu uma responsabilidade que eles próprios, agora "os mais velhos da casa", não conseguem delegar nos jovens do Risco. "Ele atirava-nos às feras e nós avançávamos. Se fazíamos erros, ele estava lá para nos corrigir e para nos apoiar, sempre."
O ateliê está "órfão" do fundador desde 2007, quando entrou com António Costa para vereador da Câmara de Lisboa, cargo que mantém com Medina. Um compromisso assumido então impede o Risco de se envolver em trabalhos que dependam de licenciamento da autarquia lisboeta. Empurrados por esta condição e, em simultâneo, pela crise - os oito arquitetos mais experientes do ateliê, todos na casa dos 40 e 50 anos -, procuraram trabalho fora das fronteiras do concelho e também do país. As dificuldades vividas agora em Angola não permitem que haja novas obras depois das que entretanto fizeram em Luanda. Trabalharam igualmente no Brasil e em Timor-Leste, onde fizeram o palácio presidencial.
A Cidade do Futebol que a Federação acaba de inaugurar no concelho de Oeiras mobilizou o ateliê, mas, como Tomás estava em Luanda no início, os primeiros passos foram dados por Jorge Estriga e João Almeida, a que se juntaram Cristina Picoto e Carlos Cruz. A escolha do terreno foi desafiante, conta Tomás, porque era ao mesmo tempo a melhor - pela proximidade de vários centros de estágio e do complexo desportivo do Estádio Nacional - e a pior, por não ser plano, característica que, convenhamos, é preferível quando se trata de campos de futebol. Foi necessário modelar o terreno em socalcos, com muros de sustentação.
E esse é um dos aspetos que mais agradam ao arquiteto. "Esses muros de suporte que fazem os socalcos entre os campos vêm para o edifício, que se agarra aos muros e cresce apoiado neles." Agrada-lhe a solução encontrada, com a utilização de pedras que ficam à vista (o termo correto é gabião, aqueles blocos de pedras "embrulhados" em rede que vemos, por exemplo, nas autoestradas), e ainda por cima recuperando materiais escavados no antigo parque de estacionamento.
Até lá chegar houve surpresas, com a "descoberta" de infraestruturas como o adutor de água para Cascais, um "tubo" com um metro de diâmetro que se sabia que passava por ali mas não se tinha a certeza do local exato. Dores de cabeça que foram sendo resolvidas.
O que divertiu muito o arquiteto foi o facto de ter sido "um projeto em que tivemos de decidir tudo até ao mais ínfimo pormenor, até aos candeeiros que ficavam em cima da mesa". Não é habitual, sublinha. "Aqui pediram-nos para tratar de tudo. Quando o projeto estava já em obra, a Federação foi ganhando confiança e entusiasmo." Particularmente feliz foi a escolha do ateliê de design gráfico P-06, de Nuno Gusmão, que acrescentou um trabalho minucioso ao traço "quase espartano" da arquitetura.
Poder escolher o mobiliário, os equipamentos, levou a criar um ambiente que lhes agrada tanto que, confessa Jorge Estriga, se sente "um bocadinho invejoso" dos que lá vão trabalhar.
Fechado o capítulo da Cidade do Futebol, estão a fazer as extensões do Hospital da Luz, em Lisboa e em Oeiras, que tinham sido desenhados pelo Risco, e mais uns pequenos trabalhos. Uma das tarefas de Tomás é " fazer contas e olhar para a frente", e mostra-se um pouco preocupado. Jorge Estriga está mais confiante e destaca a vinda do Web Summit para Lisboa, pela multiplicidade de iniciativas que vai desencadear.
O que faz um arquiteto quando não está a trabalhar? Os dois riem-se, porque cada um deles tem três filhos e portanto o tempo livre é uma história muito relativa. "Sinto muita falta de fazer grandes viagens, isso é o que me custa mais", suspira Tomás.
E desporto? "Comecei a fazer surf e esqui na neve aos 40 anos, deve ter sido uma crise de meia--idade, não me deu para comprar um carro descapotável..." Ficou para trás o râguebi que praticou intensamente desde os infantis até aos tempos do CDUL, de cuja equipa principal fez parte. Agora os ensaios são mais na arquitetura ou na culinária: Tomás é um grande cozinheiro, tem fama e proveito nesse campo. "Gosto de cozinhar para os amigos, é uma coisa que podes fazer para mostrar o teu afeto." Por isso mesmo, quando desenhou a casa onde mora, deu atenção especial à cozinha - "está tudo como eu queria" - e abriu-a para a sala, para não estar sozinho enquanto prepara não apenas os petiscos para amigos mas as refeições familiares do dia-a-dia.
Se não fosse arquiteto, o que gostaria de ter sido? "Não me vejo a fazer outra coisa. A não ser, como sugerem alguns amigos, abrir um restaurante..." "Isso é uma grande prisão", corta logo Jorge Estriga.
E Lisboa, a tal cidade onde por agora não pode fazer obras? "Depois de viajar por todo o mundo, acho que é a melhor cidade do mundo para viver. E está a melhorar pouco a pouco, nos grandes espaços públicos como a Ribeira das Naus, o Campo das Cebolas, por exemplo, e no trabalho de planeamento e regulamentação que foi feito e que é a base para a reabilitação da cidade. É um lençol curto, puxa-se de um lado e destapa-se do outro. Por exemplo, fez-se uma lei para evitar que um comerciante no piso térreo bloqueasse a reabilitação de um edifício. Na altura, parecia uma boa ideia. Agora vemos as lojas da Baixa com os comerciantes a serem despejados porque o proprietário se aproveita da lei para correr com ele. Às vezes não podemos prever as consequências das leis. Mas não podemos ir para o extremo de regulamentar tudo."
Um breve olhar para as horas, e um adeus rápido porque há uma reunião no ateliê, instalado há alguns anos na Avenida do Brasil.
Padaria Portuguesa
› Um pão caras com manteiga
› Três cafés
Total: 2,70 euros