Tolentino e a liberdade

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A morte de Tolentino de Nóbrega é mais do que a morte de um homem bom e corajoso. É irónico que ele tenha partido poucos dias depois de Alberto João Jardim ter deixado o lugar que ocupou durante 37 anos, como se não pudesse ir sem que essa saída fosse confirmada. Não pelo Tolentino, porque Jardim não tem essa relevância na vida de um homem desassombrado. Mas pelos cidadãos que dele e de Lília Bernardes receberam informações de um tempo de bloqueio. Não é exagero dizê-lo, por muito que hoje se tente dourar a pílula do que foi o controlo da informação na Madeira. Assisti, há 20 e tal anos, a um comício eleitoral com Jardim em cima do palco a apontar a dedo os jornalistas madeirenses presentes, dizendo o nome de cada um, acusando-os de serem inimigos e ameaçando-os. Ser jornalista na Madeira era muito mais do que uma questão profissional, era um ato de coragem e de cidadania. Isso hoje é passado, e Tolentino havia de querer olhar para a frente. Mas enfim, o passado tem essa grande utilidade de ajudar a perceber o que aí vem.

O filme que venceu a Festa do Cinema Italiano, Almas Negras, de Francesco Munzi, mostra a claustrofobia de viver num espaço confinado onde o poder é corrompido por interesses e tradições imutáveis. Passa-se no Aspromonte, uma terra montanhosa e de uma aspereza absoluta - de uma beleza extraordinária - em plena terra da ndrangheta calabresa. Já foram feitos muitos livros, muitos filmes e muitas séries de televisão sobre a temática do que podemos, para simplificar, chamar de "máfias". Está a chegar a Portugal a impressionante série Gomorra, a partir da obra homónima de Roberto Saviano, passada em Nápoles, terra da Camorra (e também ela exibida durante a Festa de Cinema Italiano). A questão é a mesma, literária e politicamente: um poder em forma de polvo, com regras próprias à margem da lei.

Mas no filme Almas Negras o que está em causa é sobretudo o problema da liberdade individual. É possível um homem sobreviver sem perder a identidade mantendo-se fora do que lhe está destinado pelo meio humano, familiar, político? Depois da morte do único filho, envolvido contra a vontade do pai na máquina da violência, Luciano chega à conclusão de que essa possibilidade não existe, ou não existe para ele, e faz o que decide ser a única saída.

Há sempre uma saída, uma forma de enfrentar ou contornar uma situação hostil. Os perigos hoje não se restringem a uma montanha, uma região ou um país, são globais, como bem provam as façanhas de terroristas pelo mundo todo. E se não está na nossa mão, enquanto indivíduos, combater literalmente o avanço dessa ameaça, temos sempre o nosso espaço pessoal, indestrutível, de liberdade íntima. Saudades das notícias corajosas do Tolentino.

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